Gosto da palavra catarse. No bom grego, esse precioso vocábulo significa “purificação”. Trata-se de um tipo de “elevação” da alma, do alcance de um estado de revelação, sublimação. Na prática, a catarse se revela nos momentos em que as fichas caem, quando entendemos o real valor das coisas que nos envolvem, dos acontecimentos inerentes à vida.

Existir, portanto, deveria ser catártico. Não deveríamos sair impunes de grandes leituras, do assistir a um filme esplêndido, de uma audiência generosa de canções feitas para revolucionar corpos e mentes. Se assim fosse, a vida seria um ciclo interminável e jamais linear de eventos extraordinários, impactantes, nunca à toa. Mas é bom que se diga: a catarse requer tempo.

Vale o exemplo de um professor inesquecível. As lições que dele extraímos ao prestigiar suas aulas se dão com a passagem dos anos, lado a lado com o amadurecimento de nossa visão de mundo. É improvável que aprendamos de fato em tempo real. Só o encontro entre horizontes longínquos e capacidade reflexiva mais acurada é capaz de frutificar aprendizados efetivos, duradouros e transformadores.

A ideia vale também para os livros, filmes e álbuns musicais com os quais alimentamos o espírito (e retraduzimos a matéria). Muito depois do contato inicial é que arte e cultura se permitem compreender. No cruzamento entre a experiência e a memória, o mundo se faz inteligível e se abre à percepção. Graças a isso, podemos fazer escolhas sensatas, defender bandeiras justas, ficar junto àqueles que merecem sangue e estima. Toda história de amor é também um episódio de pura catarse.

Catarses legitimam o pensamento por meio de sínteses. Entendemos o que se passa, oferecemos alternativas, extraímos desse choque o que queremos preservar e aquilo que precisa ser substituído; na sequência, elaboramos um juízo crítico do que sentimos e do que imaginamos penetrar pela razão. Também no bom e velho grego, temos, então, a dialética. A catarse, se estiver habilitada para produzir mudanças sensíveis na vida, é necessariamente um evento dialético. O ser catártico se costura pelas linhas nem sempre claras do movimento dialético, com suas contradições, suas imprescindíveis mediações e a promessa de que nada nunca será visto como imutável, inevitável ou natural.

Carrego comigo gente que foi capaz de operar inúmeras catarses em mim. Falo de amigos, gente de quem sou fã, pessoas que tive o prazer de conhecer em vida. Refiro-me também a indivíduos de outras épocas e lugares, seres humanos que ousaram pensar fora das caixinhas, contra a ordem estabelecida e em favor dos ausentes ou silenciados, vencidos ou segregados.

A catarse, é muito bom que se diga, não está disponível para reacionários ou bocós de penúltima hora (leia-se: liberais em economia, conservadores em costumes). Esses estão condenados a viver a miséria que os sonhadores lutam por superar e extinguir para sempre. Desses últimos será o reino que vier – e a eles pertencerão as melhores catarses que o tempo trouxer.

* A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.