Escrever é um ato político. Delimitar tema, eleger argumentos, fazer difíceis escolhas entre palavras e expressões, tudo isso compõe o ofício de quem faz das letras uma espécie de matéria-prima das ideias. Nesse sentido, redigir um texto exige empenho político. E o que isso quer dizer? Em síntese, assumir um lugar no mundo.

“Tudo que nóiz tem é nóiz”, canta Emicida, protagonista de um documentário sobre a expressividade de sua música. Em “AmarElo: é tudo pra ontem”, em cartaz na Netflix, o conteúdo vem antes e depois de cada cena. O show musical realizado no Teatro Municipal de São Paulo, reunindo parceiros da trajetória de vida e cultura, é entrecortado por uma leitura necessária da história do Brasil, em que a cor da pele representa exclusão e preconceito desde sempre. No documentário, arte e história se tornam, assim, escrita política.

Não é fácil imaginar negros ocupando o palco nem mesmo as escadarias do suntuoso teatro no centro da cidade de São Paulo. Suas trajetórias, assim como a de milhões de trabalhadores, são memória apagada na construção de tetos e paredes desde a Colônia. Criado para abrigar a chamada “alta cultura” (seja lá o que isso queira dizer) e os sorrisos regados a champagne francesa das classes dominantes, o Teatro Municipal de São Paulo passou a acolher outras dinâmicas de vida a partir de uma radical democratização da sociedade brasileira, quando se tornou impossível ocultar a diversidade de povos e manifestações culturais do país. Aliás, “AmarElo” aposta exatamente nisto: na brasilidade por trás e à frente do rap.

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. | Foto: Netflix/ Divulgação

O rap faz parte da cultura “hip hop”, importada dos Estados Unidos na década de 1970, uma espécie de guarda-chuva de manifestações artísticas das populações marginalizadas. No Brasil, encontrou paisagem ideal para hibridismos e reapropriações. É inspirador ver em “AmarElo” o casamento entre o rap e o samba, por exemplo. Mais do que isso: com sua música, Emicida rompe todas as fronteiras do rap e abre parcerias com a MPB, o rock, o pop e tudo o que vier, desde que sirva para a afirmação de uma manifestação plural, escondida nas entrelinhas oficiais da historiografia brasileira.

É de abraçar a alma as homenagens feitas durante o documentário a figuras da estatura do exímio baterista Wilson das Neves, da militante e intelectual Lélia Gonzalez, da atriz Ruth de Souza e dos precursores do Movimento Negro Unificado que, em 1978, em plena ditadura civil-militar, enfrentaram a repressão policial e, do lado de fora do Teatro Municipal, denunciaram o racismo e o caráter violento da sociedade brasileira.

Emicida confessa que deseja tocar a alma de todo irmão que um dia pensou não ter uma, haja vista a falsa história de superioridade de brancos contra não brancos no Brasil e no mundo. O rap antropofágico de Emicida entrelaça classe, gênero e raça, fala para indígenas, mulheres e transsexuais: orienta-se, portanto, pelo máximo que inclui, nunca pelo mínimo que exclui.

“AmarElo” não é uma opção a mais no catálogo da Netflix. Trata-se, para dizer pouco, de uma grande e obrigatória aula de história do Brasil.