É atribuída à sabedoria popular a máxima segundo a qual gosto não se discute. Transformada em uma espécie de provérbio, essa ideia não tem nada de sábia nem provém do povo.

Imagem ilustrativa da imagem A verdade se discute
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Todos temos preferências. Uns gostam mais de carne do que de verduras. Uns são Flamengo, outros torcem pelo Fluminense. Uns caminham à direita, outros seguem (não tão) firmes à esquerda. Nenhuma dessas escolhas é natural e, portanto, indiscutível. O fato de alguém ser tricolor, apreciar saladas bem coloridas e pensar à esquerda do espectro ideológico, por exemplo, não lhe confere imunidade contra equívocos, exageros, grandes mancadas. O avesso disso – e também o avesso desse avesso – é igualmente factual.

De uns anos para cá, fortaleceu-se a convicção de que a verdade existe e só precisa ser desvendada. Juízos ou estão certos, ou estão errados. Esse dualismo vem inspirando polarizações e visões extremadas de mundo, de acordo com as quais aquele que não reza pela cartilha da “Verdade” (com “V” maiúsculo mesmo) deve ser duramente combatido. Vale destacar: esse empenho à caça da “Verdade” não tem nada de radical; trata-se, antes, de um gesto de covardia intelectual e profundo desprezo pelo modo como se constrói a pluralidade do conhecimento e se modela a diversidade das formas de vida.

Os covardes que julgam conhecer o único caminho que conduz à “Verdade” costumam atribuir aos que lhe são opositores a mentira e a decadência. São retrotópicos, ou seja, defendem que o passado guarda o melhor dos mundos, que pode ser reestabelecido por elites conservadoras e pela difusão da “alta cultura” (seja lá que diabo isso for). Como a “Verdade” não pode ser disfarçada, é comum que elejam como instrumento para seu alcance uma cega fé religiosa e uma moralidade supostamente inabalável – são os famosos “sujeitos de bem”.

Mobilizar-se em círculos, produzindo e propagando teorias conspiratórias, é objetivo político dos novos “militantes do caos”. Quem se liberta de suas hostes, seja por arrependimento, seja por oportunismo, é logo taxado de traidor e inimigo da... “Verdade”. Essa tal “Verdade”, aliás, é anticomunista, celebra a tortura, pratica a censura e não esconde a desfaçatez autoritária. Quando se irrita, manda calar a boca, negando os fatos, pisando a ciência, apagando os argumentos que questionam o absurdo de suas ideias e práticas.

Dizem-se “pró-vida”, mas reiteram que a cruel desigualdade social, que ceifa existências e bloqueia oportunidades, é invenção de esquerdistas, para cujas cabeças armas de fogo devem estar sempre voltadas. Embora se digam contrários ao que intitulam “ideologia de gênero” (seja lá que diabos isso for, de novo), representam como ninguém a ideologia do gênero desumano.

É cansativo assistir ao protagonismo social desses covardes diariamente. Usurpam o bom senso, ameaçam a democracia e prestam-se ao ridículo on-line. Multiplicam-se com facilidade, apesar do lixo de que são constituídos. Ao mesmo tempo que destroem o espaço público e decretam o retrocesso histórico, tornam a vida inverossímil.

Lembram uma outra máxima, esta bastante coerente: quando os sonhos parecem mais lúcidos do que a realidade, ou é a realidade que está se desmanchando, ou somos nós.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]