Passado o Carnaval, cujos contornos ensinam que ainda há vida inteligente capaz de elaborar enredos e alegorias críticas e bem-humoradas, é hora de refletir com mais calma sobre os desafios que se colocam à frente. Quais são, afinal, as questões que devem nortear a existência humana em sociedade?

Imagem ilustrativa da imagem A última tentação de Shakespeare
| Foto: Matias EnElMundo/iStock

Para além das epidemias que ameaçam a tranquilidade de corpos e espíritos, continuam a crescer populismos e irracionalismos. Disseminam-se sacanagens de todo tipo: mentiras “oficiais” (patrocinadas por governos e rubricadas pela inanição midiática), “cancelamentos” (essa modalidade de linchamento virtual praticada por moralistas boçais), retrocessos no mundo dos direitos e garantias democráticas (maiores sinais se dão no desalento do desemprego e na asfixia da ciência, da cultura e da educação) e alargamento de uma sociabilidade adoecida, contaminada por hostilidade irreversível, que separa amigos, colegas de profissão, vizinhos e familiares. As disputas de ideias subiram ao ringue do ódio. Argumentos foram nocauteados por dentes rangentes. Ponderação e equilíbrio foram desclassificados pelo parecer favorável a um recurso da estupidez e da mesquinharia.

Em algum lugar, alguém diz que devemos ainda ser capazes de reivindicar um iluminismo requentado. Parece insano, mas a crença de que a Terra é plana é só a ponta do iceberg: mentes sob escafandros repetem a torto e a direito (e à direita, principalmente) que não há problemas com as mudanças climáticas, que preconceitos foram superados, que a democracia tornou-se (novamente) desnecessária; que o parlamento é um câncer; que a justiça impede o retorno aos “tempos de glória” do regime militar, etc. A simples defesa de valores liberais clássicos e modernos – liberdades civis, direitos políticos e garantias socioeconômicas – transformou-se em motivo para declaração de guerra: aqueles que defendem o trato impessoal, a letra constitucional e os legados renascentistas são membros da extrema-alguma-coisa.

Dia desses, um grande professor, para alertar orientandos sobre os excessos do mundo virtual, disse que no Google há tudo, menos o que de fato importa. E acrescentou: quem não sabe muito bem o que está a procurar acaba se deparando com enormes obstáculos, prorrogando a chegada da informação adequada, do dado pertinente, da opinião oportuna. Em frente a um computador ou a um desses aparelhos celulares moderninhos, tempo e esperança se perdem. O vazio e a preguiça protagonizam um espetáculo bem contemporâneo: “A agonia da razão”.

– E se Shakespeare, em vez de escrever com uma pena, pudesse ter redigido suas peças num bom notebook? Teria feito muito mais, não, professor?

– É bem possível que não – respondeu o bom mestre. – Passaria noites inteiras nas redes sociais, prejudicando a saúde e limando sua criatividade. A humanidade não teria seus sonetos, tragédias e delícias.

– Shakespeare faz alguma diferença hoje? – indagou, incomodado, o rapaz.

Pergunta difícil. O velho professor respondeu a essa provocação com retumbante silêncio. Em casa, o experiente mestre encheu a taça de vinho, sentou-se na poltrona e deixou-se levar pela escuridão. Viveu ali sua última tentação de Shakespeare.