No início eu achava que havia enlouquecido. Era só um sonho, é claro, mas parecia tão real. Depois de acordado, as palavras dela reverberavam em minha cabeça, provocavam novos pensamentos, queriam dizer alguma coisa a mais. Passei horas sem saber o que fazer, como lidar com tudo aquilo. Decidi, então, rememorar o bate-papo.



– Nunca imaginei que fosse conhecer a senhora pessoalmente. Nem mesmo em meus delírios. Tudo que você escreveu (posso chamá-la de “você”?) diz muito sobre o que sou. Confesso que passei uns 20 anos sem reler sua obra. Hoje me dou conta de que foi um tempo quase perdido. Quero agradecer-lhe tamanho legado intelectual.


– Meu rapaz, eu deveria ficar envaidecida com suas palavras. E até fico um pouco. Mas tenho impressão de que o mundo anda muito abalado pela ausência de pensamentos vigorosos. Talvez, você seja somente um sujeito resistente. Meu maior medo sempre foi que a solidão invadisse a vida na Terra, e hoje é exatamente isso que está acontecendo. Ah, é óbvio que pode me chamar de “você”. Não aprecio cultos à personalidade, como você bem deve saber.


– Sabe, Hannah, ainda me vejo defendendo a ideia de espaços públicos mais pluralistas e democráticos. Vejo com tristeza a ascensão do homem-massa, dos indivíduos que se negam a refletir sobre aquilo que estamos fazendo.


– E isso é de fato um horror. Ressurgiram adoradores de ditaduras, negacionistas da ciência, fanáticos de todo tipo. Os sonâmbulos ocuparam o mundo público e a vida privada tornou-se o único interesse das pessoas. Observo que alguns desses inconsequentes usam minha obra para justificar suas sandices. Não entenderam nada.


– Eu receio que essa gente sempre esteve por aí, Hannah. Uma parte dela, inclusive, passou a acusá-la de “supremacista branca” e “filósofa de direita”. Recortaram seus livros, jogando fora contextos e complexidades, e optaram por convertê-la em “inimiga do povo”. É de lamentar que tanto esquerda quanto direita, em vários níveis, tenham aderido à linguagem do extremismo barato, sem qualquer vestígio de pertencer ao tempo histórico.


– Eu ousaria dizer, meu rapaz, que se trata de uma nova banalidade do mal. Alguns, aliás, banalizam o bem, a política, a ideia de amor. Permitem que a ideologia ocupe suas mentes, não conseguem pensar fora de bolhas, lugares-comuns. O vazio do pensamento move esse desejo simplório de encaixar o mundo em respostas prontas e jargões mortos-vivos. Não pensam bem, desejam mal, julgam sem propriedade.


– Existe esperança, Hannah?


– Mesmo nos momentos mais sombrios devemos esperar alguma iluminação. Há gente pensando e agindo, fazendo a coisa certa. Dessas mentes predispostas a fazer o que se espera de um verdadeiro ser humano advirá o novo. A novidade é compulsória, e o sentido de tudo o que fazemos é a liberdade. Lembre-se: a vida é feita de recomeços, meu rapaz.


Acordei. Ainda atônito, preparei um café e me sentei na velha poltrona. Folheei “A condição humana” e percebi que havia dormido com o livro, indagando-me sobre inúmeras coisas. O sol se ergue no horizonte. Hora de começar tudo de novo, mais uma vez.