Esta é a última coluna do ano. Para todo e qualquer efeito, 2020 foi um amontoado de estranhas surpresas. Desde o mês de março, por exemplo, tornou-se inevitável falar em pandemia ou fazer referência a vírus, isolamento social, crise econômica, danos a sociabilidade etc.

A realidade, que continua onde sempre esteve, passou a ser observada de um modo repetitivo e cansativo. Chegando ao fim do ano, sobram incertezas e motivos para angústia. A questão é: em que se apoiar para não perder a esperança?

Gosto da ideia de Paulo Freire – um dos mais importantes educadores do mundo, em qualquer latitude – de fazer da esperança um verbo. Conjugamos, então, “esperançar”. A intenção é simples: em vez de simplesmente aguardar que o mundo se resolva, a conjugação do verbo pressupõe movimento. Assim, nós “esperançamos” e conquistamos a oportunidade de mudar o mundo, ativamente.

Se a realidade é incontornável em termos objetivos, ela é plástica no que diz respeito às subjetividades. Em vez da rendição à paralisia, é preciso (sempre) criar alternativas. A face humana das coisas depende desse investimento em converter tudo à nossa imagem e semelhança. Qual semelhança? Há todo tipo de gente, múltiplas formas de ser e viver. Que cara dar ao mundo, então?

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. | Foto: iStock

A face ideal será sempre a mais acolhedora. Não é razoável que o mundo respire uma única fragrância cultural, um único aroma econômico ou cheire a algum tipo exclusivista de organização política. Se a vida é constituída de tantas cores e formatos, adotar para tudo e todos a mesma regra é, no mínimo, ato violento. (Aliás, o que foram as expansões coloniais e imperialistas no curso da história a não ser um coletivo de episódios violentos?)

Na década de 1970, o físico Mario Schenberg, um destacado membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), se viu pressionado pelos companheiros de agremiação por causa de sua verve espiritual. Diziam a ele que, como materialista, não devia perder tempo com essas coisas de fé e espiritualidade. Schenberg, sempre bem-humorado, respondeu aos amigos que era um “materialista místico”.

Como físico e sujeito de fé, Schenberg não perdia de vista a dimensão misteriosa da vida, os quadrantes invisíveis do mundo. Ao contrário do pressuposto segundo o qual isso poderia “estragar” seu marxismo, a inclinação do valente cientista à vida do espírito elevava-o em sensibilidade e desejo por mudanças sociais, a fim de tornar a face objetiva de tudo menos áspera, menos excludente.

Aprendemos com a ciência, a fé e as artes – e também com a infinita variedade das formas de pensar e agir. Adotar um qualificativo apertado e intolerante à diversidade apenas irá obscurecer nossas visões de mundo, abolindo as chances de dilatação das ideias e ampliação do conhecimento.

O ideal é que sigamos o exemplo de Mario Schenberg e deixemos ativados nossos sensores que captam a novidade e a inteligência, para fazer de 2021 um ano tão misterioso quanto mais humano. Passamos da hora de “esperançar” um novo tempo.