O escritor moçambicano Mia Couto, no início do capítulo final da segunda parte de seu belo romance “Antes de nascer o mundo”, sentencia: “A verdade é triste quando é única”.

Imagem ilustrativa da imagem A integridade da mentira
| Foto: iStock

A frase vem me inspirando agudas reflexões nestes tempos de pandemia, em que palavras e ações binárias invadem furiosamente o espaço público. A verdade, como já revelou Leandro Konder em um de seus primorosos poemas, mora numa rua estreita, numa casinha antiga. Por ser tão simples, ela jamais desejou crescer ao ponto de se tornar um dogma, uma proposta inquestionável de leitura da realidade. Sendo coerente com todo o esforço que empenhou para ser o que é, a verdade revela-se a quem não se deixa levar por platitudes, repostas prontas e oportunistas de plantão.

É por isso que a Terra segue redonda (apesar de estar muito chata, como já alertava o Barão de Itararé), que o velho gagá jamais teve razão, que os ocupantes titulares ou enxeridos do Palácio do Planalto permanecem um horror, que a ciência, a cultura, a educação e a saúde continuam a merecer tratamento digno. Em seu interior, essas verdades comportam críticas e problematizações. O que dificilmente se consegue é refutá-las. Há, nestes e noutros casos, uma imperiosa presença de evidências.

Tornou-se moda nos últimos tempos indivíduos se declararem algo “por inteiro”. Dias atrás, perplexo, li que um sujeito só podia ser um liberal “por inteiro”, ou seja, que fosse defensor do mínimo em tudo, não só na economia. Em contrapartida, após uma defesa debiloide de Joseph Stalin, um outro sujeito se justificou: “É preciso ser marxista ‘por inteiro’”. Em ambos os casos, a “verdade” é triste, inteiramente.

icon-aspas “Ser íntegro não é se fechar para o novo, mas, diferentemente, abrir-se para os argumentos que tensionam e perturbam o velho”

Aprecio heresias intelectuais. Misturo um pouco de tudo que julgo pertinente, abrangente e avançado. Meu marxismo (que não é “por inteiro”) reconhece aspectos interessantes da tradição liberal, dialoga com os social-democratas e flerta com autores tão inusitados quanto incríveis, como o sul-coreano Byung-Chul Han e o francês Georges Bataille.

Fico imaginando como esses marxistas “por inteiro” encaram Walter Benjamin e Rosa Luxemburgo, por exemplo. Decerto, detestam os dois, uma vez que de “inteiro” eles nada têm. O maior sinal da pobreza de uma ideia é sua pressuposta integridade. Ser íntegro não é se fechar para o novo, mas, diferentemente, abrir-se para os argumentos que tensionam e perturbam o velho.

Defender que verdades não engessem o pensamento e imobilizem os corpos não é o mesmo que assumir uma postura eclética de mundo. O ecletismo tende a ser inorgânico, prestando-se a somas contínuas, sem eleição de critérios qualitativos. Já o pluralismo – uma espécie de postura democrática e orgânica em face da diversidade das formas de vida – pressupõe a reunião daqueles com os quais é possível construir pontes, ainda que a travessia entre as margens seja realizada em ritmos distintos.

Em “Antes de nascer o mundo”, Mia Couto narra a trajetória de uma pequena família só de homens, adultos e crianças, que fogem do mundo e decidem criar uma civilização à parte, uma verdade “por inteiro”. A tristeza toma conta de tudo e todos. A verdade que criam só para si, aos poucos, apresenta as mentiras de que é feita. Mentiras “por inteiro”. Isso existe, sim.