O pensador austríaco Karl Polanyi (1886-1964), em seu clássico “A Grande Transformação: as origens de nossa época”, publicado em 1944, afirma que, desde a aurora da sociedade industrial, as ideias e projetos econômicos aparecem apartados da questão social, como se fossem normas a cumprir. A história só se modifica após o precipício liberal de 1929, que forçou conexão entre os fenômenos econômicos e sociais, articulando-os tanto quanto possível. Nesse sentido, a economia fez um retorno às suas origens históricas, quando se orientava pelas forças da reciprocidade e da redistribuição familiar ou comunitária.

Imagem ilustrativa da imagem A grande transformação

Charles Baudelaire (1821-1867), o poeta parisiense, numa fina sintonia com as reflexões que décadas depois faria Polanyi, sentenciou: “Só se destrói, realmente, aquilo que se substitui”. Assim, é possível dizer que crises ferem instituições, crenças estabelecidas e até mentalidades hegemônicas, mas não as aniquilam. Passado algum tempo, elas recobram a vitalidade. Sem alternativas ao capitalismo, por mais que ele se desbote sob o sol das catástrofes autoinfligidas, o regime das trocas incessantes entre mercadorias não cessará.

O fato é que a economia do século 20, que se fez como síntese das tensas relações entre sociedade, mercado e Estado, pautada em direitos e garantias mínimas de bem-estar social, foi destroçada pelo neoliberalismo a partir da década de 1970. De lá para cá, o tamanho do que é público e comum se reduziu drasticamente em face de interesses egoístas. O Estado se converteu em instrumento do capital na luta contra a vida dos cidadãos. Recursos antes destinados às políticas sociais foram sumindo, sumindo... até virarem migalhas. Pior do que o desaparecimento dos aportes financeiros tem sido a ascensão da mentalidade reacionária e privatista, que vê na cultura e na ciência, por exemplo, uma dupla de inimigos do “desenvolvimento econômico”, do “empreendedorismo individual” e da boa vida das “pessoas de bem”. Baudelaire era um profeta.

É comum, nesses estranhos dias de pandemia, ouvir quanto tudo será diferente depois que o pesadelo terminar. Mas quais são as alternativas? Terá fim a sociabilidade dos shoppings centers e da “correria” diária? As praças, parques e espaços públicos serão ocupados por multidões de sonhadores? Os beijos e abraços que o dia a dia impede irão preencher o vazio que cerca, invade e desumaniza? Os governos mundiais entenderão que investimento em saúde, educação, cultura e ciência é evidência de sabedoria? Os fóruns sociais se multiplicarão pelo globo? Trump, Bolsonaro e monstrengos afins serão derrotados? Aqueles que pedem intervenção militar ou gritam “mito” para bajular amantes da tortura tornar-se-ão desprezíveis? Haverá mais poesia nas ruas do mundo?

A ideia de revolução não precisa ser, hoje, a que se realiza por assalto ao céu. Ela pode ser mais sutil e modesta, realizando-se em movimentos que enfraqueçam a sede infinita do capital e multiplique a potência dos afetos entre seres humanos que, de uma vez por todas, se reconheçam como iguais.

Se não vier uma “grande transformação”, reinará a barbárie, se tivermos sorte.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]