Em 1960, o jornal carioca Correio da Manhã promoveu um concurso de contos no intuito de revelar visões distintas da Cidade Maravilhosa. A ideia, além disso, era publicar jovens autores e dar oportunidade para que talentos até então anônimos pudessem expor sua criação literária.

Com a história “Um ordálio carioca”, Leandro Konder, com vinte e poucos anos, ficou em sétimo lugar no repto. Graças aos serviços públicos de digitalização de antigos periódicos, que garantem acesso livre a curiosos e pesquisadores, li recentemente o texto de Konder. A beleza da narrativa e o instigante roteiro já davam bom sinal do grande filósofo que estava por vir. Muito mais do que um sujeito de ideias e letras, Konder despontava como um exímio contador de histórias.

A trama gira em torno de um desafio entre amigos. Chamados “baixinho”, “gordo” e “baiano”, os três decidem fazer um ordálio, ou seja, um julgamento de Deus. Um deles, crente no Senhor, deveria provar a existência do objeto de sua fé. Aos outros dois cabia desfazer a imagem transcendental que ocupava os supostos delírios do colega. À noite, o trio dirige-se a uma lagoa e se lança à disputa. Uma garrafa com água benzida – será? – teria de escapar a pedradas. Jogada longe nas águas da lagoa, e iluminada por um feixe de luz artificial, a garrafa, se quebrada por uma das pedras, afundaria junto com a existência de Deus – ou, caso não atingida, permaneceria boiando e atestando o poder divino.

O desfecho, é óbvio, exige que se leia o conto de Leandro Konder. Ele foi publicado, ao lado dos demais vencedores do concurso, no volume “A cidade de cada um”, lançado pela Civilização Brasileira em 1963. (É provocador, contudo, que os interessados o procurem na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, esse oásis de memórias e esquecimentos.) Não existe nada mais ajustado à condição humana do que alimentar intenções, superar estados de espírito, descobrir como histórias se fecham e voltam a se abrir, criando a sensação ilusória de um tempo contínuo. Na prática, sabemos que é o caos a grande regra da vida.

“Um ordálio carioca” me fez pensar que, para enaltecer a cidade, não é preciso que se descrevam ruas, praças e monumentos. No conto, o Rio de Janeiro é protagonista sem aparecer; é centro de tudo sem que haja nenhuma menção às suas características mais evidentes. É nos detalhes das conversas que brota todo um jeito de ser carioca, por assim dizer. A cidade, então, é expressão da subjetividade que responde a identidades culturais mais amplas, tipicamente daquele lugar, incontestavelmente familiares e universais a um só tempo.

Se hoje intuo pensar e viver Londrina, a nossa cidade, não tenho de promover sua existência física. Esta, antes, depende da circulação de corpos e espíritos que a definem nos mínimos instantes do cotidiano. Talvez não seja necessário que façamos um ordálio para provar o que quer que seja. Mas, decerto, a cidade requer que a expressemos naquilo que realizamos, de dia e de noite, a sós, na multidão ou durante nossos mais felizes e decisivos momentos.

* A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.