Imagem ilustrativa da imagem A cidade de 100 colunas
| Foto: Shutterstock

Esta é a coluna número 100. Desde maio de 2017, excetuando-se 15 dias em janeiro de 2018 e mais 15 dias no verão deste ano (quando merecidas férias foram muitíssimo bem aproveitadas em família), “A Cidade Futura” seguiu seu itinerário sem disrupções.

De muitas maneiras, tentei me apropriar do exemplo de Antonio Candido, intelectual que se fez mestre de várias gerações de brasileiros inquietos diante de uma história nacional tão desigual e violenta. O autor de “Os Parceiros do Rio Bonito” costumava afirmar que não tinha temperamento político, espírito associativo ou ânimo combativo. Gostava mesmo era de ser professor. Ainda assim, como cidadão, via-se obrigado a se mobilizar democraticamente em favor de uma sociedade mais livre e humana.

Vejo-me, humildemente, sob o mesmo céu: sou tão somente um professor de Sociologia. Não obstante, aturdido por enorme sacrifício pessoal (sou poeticamente tímido e tragicamente avesso às multidões), desloco-me de meu mundo interior para ajudar na fabricação de uma exterioridade mais saudável e inteligente. Penso que seja, de fato, um dever, principalmente em tempos de contínuas ameaças de obscuridade e autoritarismo contra a diversidade das formas de vida.

Escrever um artigo ou uma crônica toda semana para o jornal não é tarefa fácil. A avalanche de eventos, a tempestade de interpretações e a maledicência da desinformação dificultam a escolha dos assuntos a abordar e desafiam a linguagem. Afinal, como ser suficientemente claro e didático para atingir um público amplo e, ao mesmo tempo, não cair na armadilha dos truísmos e precipitações? Mais ainda: como atravessar o pântano da irrelevância midiática e das redes sociais, demonstrar seriedade e não perder o necessário senso de humor? De todo modo, o debate público merece respeito pelos que se dispõem a encará-lo.

Nesses 100 textos publicados na Folha de Londrina, flagrei-me quase sempre na contramão das ideias em circulação. O viés “mainstream” do pensamento não me seduz. Desconfio quando todos concordam, em essência, entre si. Na política, na cultura, na economia ou no colunismo social, é preciso que existam tons dissonantes, floresçam novidades, borbulhem indivíduos interessados em escovar a história a contrapelo, como ensinou Walter Benjamin. Sem isso, vigora o sempre incômodo “déjà-vu”.

Uma ideia persistente é fazer um pouco do que fez o próprio Walter Benjamin em “Infância Berlinense”, cuja narrativa se constrói na virada do século 19 para o 20. Em suas recordações de garoto, Benjamin não esconde afetos e dissabores; apresenta cenários e detalha perfis humanos; realça costumes e se fragiliza com uma vida que, à frente dos seus olhos, dá sinais de desgaste e intui precipitar o futuro, tão imprevisível quanto assustador. Mas Benjamin não privatiza a história. Ele tece as memórias de si como meio para apresentar ao leitor um contexto mais amplo e abrangente. Sua infância era singular e universal a um só tempo.

Em A Cidade Futura, o incomum (singular) nunca foi mais importante do que o comum (universal) – posicionei as duas dimensões lado a lado. Por isso, evitei os “ismos”. Dizer que sou de esquerda, torço pelo Fluminense Football Club e tenho à cabeceira reflexões espirituais de Pedro Casaldáliga é inflexão decisiva para que o leitor saiba com quem ele dialoga e reparte suas angústias. Isso, no entanto, não pode ser o ponto de partida nem precisa estar inscrito em subtítulos. Aqueles que querem fazer confissão em jornal deveriam se ocupar em preencher tão somente diários, daqueles que vêm com cadeado e chave.

Meu desejo é que A Cidade Futura siga adiante, colaborando para arejar o debate público neste momento de tanto binarismo, que empobrece mentes e brutaliza corpos. A única certeza de que me revisto é a de que, a cada coluna, estarei sempre a serviço de um espírito republicano e democrático, em defesa da pluralidade das formas de ser e viver. Para tanto, o exercício permanente da autocrítica é-me indispensável.

Só pode escrever para o grande público aqueles que não temeriam passar uma noite inteira ouvindo a consciência sussurrar seus segredos e notas de rodapé.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]