“Pindorama” é uma alegoria. Trata-se do modo como o outro vê o Brasil, um outro que pode estar dentro ou fora, mas não é considerado “real”. Nesse sentido, “Pindorama” é a escrita do “não ser” nacional, que intui simbolizar sua própria imagem no espelho. Uma alegoria do Brasil, portanto, tem de dizer alguma coisa sobre esse enorme, estranho e às vezes desalmado território, com seus muitos povos, costumes, leis e histórias.

Imagem ilustrativa da imagem A alegoria de Pindorama
| Foto: iStock

O Brasil poderia ser uma biblioteca? Poderíamos percorrer a história do país nos corredores e saguões desse monumento cultural imprescindível? “Pindorama”, naquilo que tem de bom e ruim, seria bem alegorizada numa partida de futebol? O êxtase da partida, a emoção dos atletas, a vitória perseguida, a derrota anunciada, essas coisas, enfim, fariam alguém ver o Brasil sem ter de confrontá-lo nua e cruamente? Depende da imagem do Brasil que interiorizamos.

O Brasil, hoje, optou por ser, efetivamente, uma alegoria corrompida. As cores verde e amarela, por exemplo, em vez de representarem a bandeira, recordam gente pouco sã, que se reúne em bandos, mente, grita, atira e, depois, se faz de vítima. (Usar as outras cores da bandeira, o branco e o azul, não redimirá ninguém.)

“A culpa é do PT”, dizem os mais exaltados. É comum que essas mesmas peças da “alegoria reversa” – um país que decidiu se vestir do avesso e, ainda assim, só ser compreensível por meio de criativas engenharias literárias – mandem seus críticos para Cuba, Venezuela ou Coreia do Norte. Esses países, aliás, seriam o “não outro” da alegoria Brasil. O problema é que, se interrogados, os verde-amarelos talvez nem saibam onde ficam essas nações. O amaldiçoado “vírus chinês” e a redentora cloroquina sequestram tanto a serenidade quanto a urgente radicalidade do pensamento. Toda alegoria que não diz nada sobre aquilo que pretende representar, poética ou melancolicamente, é estúpida.

Uma boa escrita alegórica do Brasil contemporâneo seria muito bem ambientada no inferno. Lá, a despeito dos anjos residentes, nada é o que parece ser. Pior: nada permite ser chamado por aquilo que de fato é. Assim, na alegoria infernal do maior país da América Latina não existem governos de milicianos e o racismo é coisa impensável, assim como o machismo e a homofobia.

icon-aspas “As cores verde e amarela, por exemplo, em vez de representarem a bandeira, recordam gente pouco sã, que se reúne em bandos, mente, grita, atira e, depois, se faz de vítima”

Não há fascistas no Brasil infernal. Só comunistas, esses tipos perigosos que querem dominar o mundo através do Foro de São Paulo, da “classe” artística, da extrema-imprensa e das universidades, o antro do “marxismo cultural”. O câncer do Brasil infernal, aliás, é o esquerdismo. O regente infernal (inteligente que só ele) promete uma cura para esse mal, tão logo explique as mentiras de uma república de parentes e a atuação clandestina de seu gabinete do ódio tão particular.

Walter Benjamin escreveu que, se os inimigos vencerem, nem os mortos estarão a salvo. E concluiu, um pouco desesperançado, que os inimigos nunca deixaram de vencer. “Pindorama” – essa nação de indígenas, negros e povos subalternizados que jamais viram estátuas – pode, agora, puxar a corda daqueles que sempre venceram, denunciando como e por que se saem vitoriosos no inferno que tão bem representam.

A alegoria do futuro será um domingo ensolarado na praia, em que a vida será festejada por gente de todas as cores e expressões do desejo.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]