Na exposição "O que você estava vestindo?", apresentada em Bruxelas, em 2016, foram apresentadas as fotos das roupas de mulheres e crianças no momento em que foram estupradas: de vestidos de criança, passando por roupa de mergulho, chega-se a uniformes de bombeiras e policiais. No início deste mês, o julgamento por uma das câmaras criminais do Tribunal de Justiça de São Paulo de uma acusação de estupro ocorrido na USP (Universidade de São Paulo) levou não apenas professoras e alunas da instituição a comparecerem em referida corte, como também movimentou diversos grupos e coletivos por meio das redes sociais.

Dentre as questões que se colocam num momento em que o tema, mais uma vez, vem à tona, especialmente pelos comentários das redes sociais, está a "cultura do estupro". Interessante a propósito que, se colocarmos no Google o início da expressão, ele não sugere "cultura do estupro", embora, quando se vai completando até digitar-se "u", chegue a sugerir "cultura do estudo". Isso poderia levar quem critica tal expressão, ou o fato em si, a dizer que isso ocorre porque "esse fenômeno não existe" ou porque "a pesquisa sobre ele é irrelevante".

A criação e o uso do termo em sua versão inglesa "rape culture" - que encontra o mesmo silenciamento no buscador mundial - são, normalmente, atribuídos a feministas norte-americanas de meados da década de 1970 para designar a existência de um pacto social do qual decorrem um pensar e um agir que objetificam o corpo das mulheres e em que a prática sexual encontra-se implicitamente autorizada. Associam-se a isso outras categorias, como a misoginia, o patriarcado e a dominação masculina.

Obviamente, cabe observar que, quando se fala em "cultura do estupro", não significa que há unanimidade social em que todo mundo concorda com sua prática. Tampouco revela que não há resistência contra ela. Os comentários das redes sociais de forma mais geral sobre "estupros" ou especificamente sobre o caso menos discutem as teses de defesa sobre "ausência de provas" e mais se fixam noutro fenômeno que é a "culpabilização da vítima", em que se atribui a ela a responsabilidade pelo fato. A métrica dos cabelos e das saias, a cor da pele ou do batom, o comportamento ou os hábitos, seu sorriso ou sua sisudez seriam elementos dos discursos que se traz para estuprar, justificar e revitimizar as próprias mulheres.

Dessas falas, inclusive, cria-se uma estereotipia da vítima preferencial. No entanto, quando olhamos os dados recentes do Atlas da Violência 2018, vemos que mais de 50% das vítimas são crianças e adolescentes de até 13 anos de idade, e nesse grupo, 30% foram violentadas por familiares. Ao olharmos os lugares em que as vítimas foram violentadas, como, por exemplo, em São Paulo, verifica-se que 65% dos casos ocorrem dentro da própria casa e o terceiro lugar em que mais acontecem são os estabelecimentos de ensino. A difusão do fenômeno em relação aos mais diversos grupos sociais é representada pela exposição "O que você estava vestindo?", já mencionada.

Assim, parece estar autorizado o uso da expressão "cultura do estupro" como esse pacto social, partilhado - ao menos - por um número expressivo de internautas e seus comentários que admitem e incentivam a prática de qualquer ato sexual sem consentimento prévio e expresso ou, até mesmo, diante de sua negativa. E aí que se põe a indicação de uma contracultura ou uma cultura antiestupro em que, a partir da compreensão de que o ato sexual não consentido prévia e expressamente é violento, promova-se uma perspectiva e uma posição proativa de respeito à outra pessoa no âmbito de sua liberdade e sexualidade. Mulheres não são objetos à disposição.

PRISCILLA PLACHA SÁ é professora da PUCPR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná) e da UFPR (Universidade Federal do Paraná), advogada criminal e parceira do Instituto Aurora

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