Há algo sublime em retornar a um álbum como Astronauts, do The Lilac Time mais de três décadas após seu lançamento original. É como abrir uma janela para o passado e perceber que o ar ainda fresco daquela paisagem sonora continua a ventilar ideias e emoções no presente.

Este relançamento pelo selo Needle Mythology Records não é apenas um resgate técnico – com sua remasterização minuciosa e faixas inéditas –, mas um lembrete da ressonância de um trabalho que, silenciosamente, desafiou seu tempo. O grande clássico volta transformado agora em álbum triplo (tanto em cd quanto em vinil).

Stephen Duffy e sua banda criaram algo raro: um disco que é ao mesmo tempo um testemunho de uma época e uma obra intemporal. Astronauts encapsula uma transição histórica – o apagar das luzes dos anos 80 e o surgimento de um novo ethos musical nos 90 –, mas também a viagem íntima de um artista comprometido com a introspecção e a beleza quase nua da melodia.

Em 1990, o mundo da música era uma encruzilhada pulsante. Nos Estados Unidos, o grunge emergia como o rugido de uma geração desencantada, enquanto no Reino Unido a dance music, o Madchester e a explosão do rave ditavam o ritmo das pistas. E entre esses extremos, surgiam espaços marginais de contemplação – locais onde Astronauts encontrou seu refúgio.

Este não era um álbum para as massas. Ele não gritava nem fazia concessões às tendências de mercado. Pelo contrário, ele sussurrava. E, ao sussurrar, convidava o ouvinte a se aproximar, a ouvir com atenção, a se perder em suas paisagens líricas e instrumentais.

O título Astronauts é uma chave para compreender a dualidade desse disco. Astronautas são exploradores – ousados, solitários, movidos pelo desejo de atravessar fronteiras e descobrir territórios desconhecidos. Mas também são figuras vulneráveis, deslocadas em vastidões que só revelam sua imensidão através da solidão. É assim que este álbum se apresenta: como uma jornada tanto externa quanto interna, explorando tanto a amplidão das emoções humanas quanto as minúcias da experiência cotidiana.

A produção, conduzida com uma delicadeza artesanal, contrasta radicalmente com a pompa tecnológica que marcava os anos 80. Astronauts é acústico, íntimo e deliberadamente imperfeito. Cada acorde, cada vocal de Duffy carrega uma honestidade palpável, como se a banda tivesse gravado não em um estúdio, mas em uma clareira cercada por florestas. Na verdade, boa parte do álbum foi gravada no estúdio que Duffy mantinha em sua casa e em algum momento do disco até é possível ouvir um avião passando pelos céus do interior da Inglaterra e que o isolamento acústico falhou em silenciar.

The Lilac Time na época da gravação original de Astronauts
The Lilac Time na época da gravação original de Astronauts | Foto: Divulgação

UM CONTO FOLCLÓRICO

Astronauts não é apenas um conjunto de canções; é uma trança urdida com histórias entrelaçadas, um conto folclórico tecido com as fibras de melodia, metáforas e imagens evocativas. Faixas como "Iverna"; funcionam como pinturas bucólicas – suas texturas de guitarra e harmonias etéreas transportam o ouvinte para campos verdejantes e céus nebulosos.

"The Lost Girl in the Midnight Sun", por outro lado, adota uma narrativa quase cinematográfica, onde a melodia e as letras conspiram para criar uma cena de saudade e descoberta. Aqui, Duffy parece se inspirar tanto no folk inglês quanto nas tradições narrativas do blues, construindo uma ponte entre continentes e culturas sonoras.

"Dreaming" é o coração atemporal do álbum – um momento de equilíbrio perfeito entre melancolia e esperança. A faixa convida o ouvinte a uma jornada introspectiva, mas nunca abandona a possibilidade de um desfecho redentor.

Enquanto muitos álbuns buscam atenção com grandiosidade, Astronauts escolhe um caminho inverso. Ele celebra o espaço entre as notas, o eco das palavras não ditas, o silêncio que amplifica a introspecção. É uma estética que encontra parentesco com o trabalho de Nick Drake, mas que, sob a direção de Duffy, adquire uma dimensão pastoral e comunitária. Ambos ficaram eclipsados em suas respectivas épocas para serem redescobertos muito depois.

A crueza refinada do disco é ainda mais evidente na remasterização de 2024. Nos estúdios Abbey Road, Miles Showell conseguiu captar nuances antes ofuscadas na produção original, trazendo uma nova clareza cristalina às camadas de cordas, vocais e texturas acústicas.

Embora Astronauts tenha passado despercebido pelo grande público em 1990, ele encontrou uma ressonância duradoura entre os amantes do folk alternativo e do pop introspectivo. Essa recepção limitada, porém profunda, reflete a natureza dual do disco: ele nunca foi projetado para agradar às massas, mas sim para se conectar com aqueles que buscavam algo mais autêntico, algo que pudesse ser sentido tanto nos ossos quanto na alma. E agora, com o relançamento, ele encontra um novo público – uma geração que talvez, mais do que nunca, esteja pronta para ouvir sua mensagem de delicadeza e resiliência.

A reedição expandida de um clássico absoluto
A reedição expandida de um clássico absoluto | Foto: Divulgação

A edição super deluxe de Astronauts é uma obra por si só. Mais do que uma mera reedição, ela é uma imersão no processo criativo da banda. As demos e versões alternativas presentes no disco extra Softened By Rain: The Making Of Astronauts oferecem um vislumbre íntimo da construção de um álbum. Elas revelam não apenas as escolhas musicais, mas também as dúvidas, experimentações e momentos de epifania que moldaram cada faixa.

Da mesma forma, as gravações ao vivo em Any Road Up: The Lilac Time Live 1990/91 capturam a energia visceral das performances da banda. Essas interpretações não são apenas execuções, mas reimaginações, onde cada música ganha novas dimensões ao interagir com o público e o espaço.

No centro de Astronauts está Stephen Duffy – um artista que, em vez de seguir as ondas do mainstream, escolheu cavar profundamente em sua própria terra fértil de criatividade. Duffy fez parte do comecinho do Duran Duran como baixista e depois baterista, mas deixou a banda para seguir sua luz própria. Ele é um exemplo de como a resistência às tendências de mercado pode produzir obras que, embora subestimadas em seu tempo, adquirem um brilho quase místico com o passar dos anos.

Para o The Lilac Time, este álbum não é apenas uma peça de sua discografia; é uma declaração de princípios. É a prova de que a música pode ser tanto um refúgio quanto uma forma de resistência, tanto um espelho quanto uma janela. Revisitar Astronauts é como explorar uma casa abandonada onde cada quarto guarda um eco de vida (como quando a câmera passeia pela casa da locação de Ainda Estou Aqui enquanto sobem os créditos no final do filme). Ele é um lembrete de que, em um mundo que frequentemente privilegia o efêmero, há espaço – e necessidade – para a permanência.

Com este relançamento, Astronauts não apenas reafirma sua relevância; ele nos convida a sermos também astronautas. Não de espaços intergalácticos, mas das vastidões internas onde memória, emoção e melodia convergem. Uma jornada que, como a música de The Lilac Time, nunca termina verdadeiramente – ela continua a nos chamar para mais perto.

* Silvio Demétrio é professor do curso de jornalismo da UEL e edita a newsletter de cultura “Tanga – a verdade quase nua” na plataforma Substack.