Numa linha reta, a distância entre Minas Gerais e o Mississipi dá um total aproximado de 8.400 Km. É um bocado de chão. Um bocado maior ainda de pedras que podem estar ao longo desse caminho todo. É muita coisa. E já que estamos no campo da

imaginação, vai lá: imagina que Minas e o Mississipi se cruzam como que num sinal de soma (“+”). Uma Encruzilhada, tal como uma dobra no espaço e no tempo. De Minas vem Drummond e do Mississipi quem se convoca é Robert Johnson, o bluesman. No vórtice desse cruzamento e desse encontro havia uma pedra. Havia uma pedra no meio desse caminho. “Onphalos”, a pedra sagrada que Cronos depositou em Delfos.

Ponto de origem. Encontro do céu com a terra. O umbigo do mundo.

Sones in My Passway (Robert Johnson):

E é da fonte em direção à foz no oceano, como o rio Mississipi, que a afinação do Capiroto na viola caipira também é conhecida como Rio Abaixo. O resultado harmônico não é muito diferente da afinação alternativa que se usa no violão para tocar blues com o slide (aquele gargalo de garrafa de vinho que os bluesmen usam para tirar um som mais cortante com as cordas de aço). Existem certas batidas rítmicas no blues rural de Johnson que em alguns momentos lembram algum rasqueado ou pagode de viola. É o caso de “Stones In My Passway”, uma das 29 lendárias canções de Robert Johnson que foram imortalizadas nas duas históricas e únicas sessões de gravação com o bluesman no Texas em 1936 e no ano seguinte.

Carlos Drummond de Andrade, 1970
Carlos Drummond de Andrade, 1970 | Foto: Domínio público

O poema “No Meio do Caminho” de Drummond foi publicado pela primeira vez em 1928 na Revista Antropofágica. Mais tarde apareceria em “Alguma Poesia”, primeiro livro do poeta de Itabira publicado em 1930. “No meio do caminho tinha uma pedra...”

– conservadores que defendiam o parnasianismo atacaram o poema criticando-o por seu uso abusivo da redundância e demais liberdades modernas. Quase um século depois de sua primeira publicação o poema é uma esfinge que devora a imaginação de

críticos e leitores que elaboram uma miríade de explicações para “a pedra de Drummond”. Uma boa parte dessas explicações gira em torno do tema das dificuldades e obstáculos da vida.

Qual a ligação então entre Drummond e Johnson? É que o segundo também fala em uma de suas composições sobre pedras no caminho. “Stones In My Passway” fala exatamente sobre esse mesmo tema. “I got Stones in my passway and my road seems

dark as night” (Eu tenho pedras em meu caminho e minha estrada se parece escura como a noite).

“No meio do Caminho” (Instituto Moreira Salles):


Minas Gerais é um dos territórios da viola caipira. O imaginário do instrumento está intimamente vinculado ao imaginário da região toda. Drummond era mais fleumático, mas Guimarães Rosa deleitava-se com a atmosfera dos causos populares do sertão mineiro e o mito do pacto com o demônio está presente na literatura mineira em seu momento mais forte, no Grande Sertão, Veredas, como nessa passagem: “O pacto! Se diz - o senhor sabe. Bobéia. Ao que a pessoa vai, em meia-noite, a uma encruzilhada, e chama fortemente o Cujo - e espera. Se sendo, há-de que vem um pé-de-vento, sem razão, e arre se comparece uma porca com ninhada de pintos, se não for uma galinha puxando barrigada de leitões. Tudo errado, remedante, sem completação... O senhor imaginalmente percebe? O crespo -a gente se retém - então dá um cheiro de breu queimado. E o dito - o Coxo - toma espécie, se forma! Carece de se conservar coragem. Se assina o pacto. Se assina com sangue de pessoa. O

pagar é a alma. Muito mais depois”.

Robert Johnson figura no imaginário do blues dentro desse mesmo espectro do pacto fáustico com Mefistópheles. A lenda que cerca seu nome contempla uma série de variações, todas elas em parte verdadeiras e em parte não. Diz-se que Johnson aprendeu a dominar o slide guitar muito rápido. De uma hora para outra ele apareceu dominando tecnicamente o instrumento e cantando como ninguém. Atribui-se a isso o “pacto” que ele teria feito com o Coisa Ruim numa encruzilhada. O fato dele ter

composto e gravado uma música que tem como título e tema “Crossroads” só reforça o mito.

Essa satanização do imaginário do blues em torno da figura de Robert Johnson tem evidentemente a marca de um racismo estrutural muito forte e que se pode entender também pela chaga da intolerância religiosa que se manifesta num contexto latino

como o nosso. A entidade dos cultos afro que foi deturpada no imaginário anglo-saxão dos americanos é Legba, nome em outro dialeto que nomeia o que em iorubá é Exu.

Não é difícil a reprise na Sessão da Tarde do clássico “Crossroads”, com Ralph Machio interpretando um branquelo que aprende como tocar blues com um velhinho que diz ter acompanhado Johnson. Antes da famosa cena do duelo com Steve Vai a narrativa

do filme apresenta como aconteceu o pacto do velhinho bluesman tutor do personagem de Machio no mundo do blues. A entidade que se apresenta na encruzilhada é exatamente Legba. Que no imaginário dos cultos afro-brasileiros seria Exu, que não é a figura do mal.

Exu e Legba estão muito mais próximos do mito de Hermes (Mercúrio). Entidades da transição ou passagem entre mundos. Deuses da aurora e do arrebol. A associação à figura do mal é fruto da mais pura intolerância religiosa e do preconceito estrutural. Só lembrando que quando saiam em alguma jornada ou viagem, era costume entre os gregos depositar pedras ao lado do começo da estrada como um tributo a Hermes, o deus da passagem, dos caminhos. Um ato propiciatório de pedido de proteção.

Voltamos à pedra no meio do caminho. Signo da dificuldade. Da opacidade da realidade imediata como dado bruto dos sentidos. É a maneira como revestimos essa opacidade com o tecido de nosso imaginário que torna o mundo dotado de um

sentido. De um significado. Seja lá qual for o tecido. Todos são verdadeiramente importantes e imprescindíveis, porque deles é que se faz a nossa riqueza. O tecido da arte, o tecido da religiosidade, o tecido do conhecimento, da poesia, da curiosidade e

do interesse. É só assim que as pedras se tornam poesia. Tecido, que palavra mágica. A palavra “texto” vem de “tecer”. Amarrar as palavras às coisas. A urdidura do sentido. A magia de provocar um encontro entre um poeta mineiro e apolíneo que se tornou

carioca com um bluesman dionisíaco que cantava as encruzilhadas como protocolo de experimentação. Um uso da linguagem que seja antifascista. Que nos aproxime. Que nos redima dos preconceitos e arbitrariedades. Poeticamente atentos a cada pedra

que se apresente no caminho como oportunidade para mais “alguma poesia”.

Silvio Demétrio é professor do curso de jornalismo da UEL.

* A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.