Uma chuva dourada sobre o país
É imperdoável o papel ridículo dos meios digitais que tentaram diminuir o brilho de Fernanda Torres dando espaço para a nulidade falar sobre Lei Rouanet
PUBLICAÇÃO
quarta-feira, 08 de janeiro de 2025
É imperdoável o papel ridículo dos meios digitais que tentaram diminuir o brilho de Fernanda Torres dando espaço para a nulidade falar sobre Lei Rouanet
Silvio Demétrio / Especial para a FOLHA

Sou professor de jornalismo desde a virada do século. Escrevo assim para dar aquele peso solene mais ou menos como o fez o professor Ciro Marcondes Filho recorrendo a uma expressão francesa quando publicou o seu clássico “Jornalismo En Fin de Seiécle” – um livro que tentava então equacionar os impasses que esse ofício vislumbrava diante do horizonte que o digital trazia naqueles sofridos dias de noites intermináveis nos anos 90. Existiam então cenários imaginários catastróficos como o “bug do milênio” e o clima geral era apocalíptico. O Réveillon da virada foi um tédio só. Não aconteceu nada como sempre não acontece a todo ano novo. O ano novo é a anti-notícia concretizada. Nossa banalidade seria monstruosamente previsível não fosse uma Fernandinha arrebentar com a boca do balão de vez em quando (que belezura é o país todo ganhar junto com ela um Globo de Ouro).
Estou tentando aqui entrar no assunto de uma forma suave, pela leveza - Ítalo Calvino sugeriu esse protocolo num ensaio como uma de suas propostas para o milênio que agora trilhamos. Em outros termos menos poéticos, uso aqui de retórica. Sim, estou tentando fazer a sua cabeça. Qualquer pessoa que escreva um texto irá incorrer nisto. O que quero dizer é que talvez agora seja o caso de atualizar um pouco o título de um possível livro que ainda não foi escrito pelo professor Ciro que infelizmente subiu antes do combinado. Talvez agora o título adequado para uma retomada das questões que o professor lançava no final do século passado seria “jornalismo no fim do mundo”. No sentido de jornalismo dos cafundós. O jornalismo de nenhures. Do buraco obscuro das trevas da mediocridade. Sim, lá de onde nada escapa: o desprezo pelo brilho da vida que a vocação para a mediocridade exige de quem reza em círculos em torno de pneus.
É que não consigo entender, ou melhor, não consigo depurar com meu fígado e adjacências de professor de jornalismo a miséria humana de ver a imprensa brasileira em meio digital tentar reabilitar um bolor histórico de meio século quando vai “repercutir” o prêmio de Fernanda Torres com alguém que presta homenagens a torturadores. Isso é um atestado de miséria intelectual. Tanto é que não pega. Não funciona. Fica ridículo porque é pueril – como bem Freud já desmistificou, existe muita crueldade na infância. Acho que o que nos deixa indignados é exatamente essa mistura de vilão da sessão da tarde com um espírito de quinta série. É um fenômeno regressivo. Pela graça da autenticidade possível ao ser humano Fernanda Torres e o filme de Walter Salles não têm absolutamente nada a ver com essa sombra medíocre. Não há o que falar sobre os êxitos do filme e de quem o fez para quem participa dessas trevas. Inventaram no Brasil o “fascista de armário” – ele fica ali, enrustido, mas basta algum pequeno brilho de uma alma verdadeiramente humana em seu devir de criação e alegria que ele não resiste: o “fascista de armário” sai com tudo reclamando pelas sombras dissipadas.
Sinceramente, não existe nenhuma polarização política no país a não ser na cabeça e no coração de quem é profundamente mal intencionado e politicamente equivocado para não dizer intelectualmente desonesto. Que o nosso Globo de Ouro da Fernandinha seja uma “chuva dourada” sobre a vontade de ser obtuso do brasileiro que não entendeu ou finge não entender o significado histórico do que aconteceu nesse país em 1964. O que aconteceu em 2018. O que queriam que acontecesse de novo naquele 8 de janeiro. Essa vontade de abismo tal como aquela da qual o evangelho de Marcos fala que se apossou de uma manada de porcos. De vez em quando ela rola por aqui.
Aliás, essa coisa de direita e esquerda já deu pra bola. A cleptocracia russa usando como capital simbólico a Revolução para mesmerizar uma “esquerda convicta”, ao mesmo tempo que o narco corporativismo ocidental requenta um macartismo esdrúxulo e demodée no setor conservador desse espetáculo decadente chamado mundo sem rumo em 2025. Um viva para quem duvida e desconfia. Um salve para quem não tem convicção alguma. Lembre-se sempre de primeiro conferir se onde você está pisando dá pé porque já estamos com a água literalmente no pescoço.
A sustentabilidade do planeta fala muito mais alto do que esse fla-flu entediante e triste de quem boicota o real para se sentir seguro no próprio conto de fadas. Vamos celebrar quem consegue gerar luz enquanto uma energia renovável porque humana. A indústria criativa brasileira agradece. Chega de ser medíocre. Viva Fernandinha Torres. Viva a Lei Rouanet (à qual o filme de Salles e Fernandinha não precisou recorrer). E o resto que se afogue em nossa chuva dourada.

