Um pouco depois de ter completado sua septuagésima nona volta ao redor do astro rei, o pianista e insuflador de musicalidades expandidas Tom Constanten bateu um papo com este que vos escreve através desse milagre que comprime o espaço chamado internet. A conversa se desenrolou durante uma troca de e-mails que aconteceu ao longo de uma semana.

Constanten assumiu seu lugar como tecladista do Dead em 23 de novembro de 1968 (nove dias depois deste que vos escreve ter dado início à sua órbita no entorno do sol).

Tornamos-nos amigos missivistas no final dos anos 90 (achei um endereço dele num livro do Steve Silbermann e mandei uma carta – algum tempo depois ele respondeu com um postal de San Franciscoi). Com a internet passamos a conversar de forma mais doméstica sobre assuntos como a genialidade de Fellini, montagens fotográficas e, é claro, predominantemente sobre música.

Aluno de Boulez, Luciano Berio e Stockhausen, Tom Constantem trouxe para o Grateful Dead um espírito de vanguarda que a banda assimilou e expandiu ao longo de sua longa e estranha viagem. Junto com o também tecladista Bob Bralove Tom Constanten formou o duo Dose Hermanos que recentemente (2022) lançou “The Persistence Of Memory”, que já está disponível em plataformas de streaming. A seguir alguns trechos de nossa conversa.

Seu último trabalho com Bob Bralove faz referência à arte de Salvador Dali, que era uma grande inspiração durante o psicodelismo dos anos 60. No cenário da ciência atual vemos ressurgir a pesquisa com plantas psicoativas agora numa dimensão de microdoses. Você acha possível um movimento pendular da história? Evidentemente que com outros elementos e num novo contexto.

Acho que existe um impulso natural de ver padrões, de ligar os pontos. Tal como se conversássemos sobre um certo tipo de carro e, na semana seguinte, você vê muitos deles. Periódica ou não, a maior parte desse tipo de coisa é palpável em retrospecto, mas não preditiva. Assim como o lançamento de uma moeda ainda é uma proposição 50/50. Parte disso tem a ver com a cadeia de suprimentos. Antes do LSD estar disponível, havia o peiote e a psilocibina. Mesmo antes disso, havia sementes de ipoméia. Gastricamente angustiante, mas eficaz. Eu vi microdoses pela primeira vez na década de 1980. Há tantos pontos para conectar

que estou desconfiado do meu impulso em projetar padrões. Salvador Dalí. Poderia muito bem ter sido Clyfford Still (ou seria Clifford Styll?) Ou Piet Mondrian. Agora temos aquelas exposições imersivas (todas aquelas projeções - eles devem ter economizado muito no seguro) de Van Gogh, Monet, Georgia O'Keefe e a Capela Sistina. Mal posso esperar para ver a versão

de Jackson Pollock. Agora, isso seria psicodélico. Yves Tanguy, alguém? Nunca vi um “dessurgimento”. Dose Hermanos com certeza segurou nosso fim. E o contexto é sempre um alvo em movimento.

Tom Constanten, o espírito avant garde do Grateful Dead
Tom Constanten, o espírito avant garde do Grateful Dead | Foto: Williams Cropp/ Divulgação

Em seu livro "Poetic Vision and the Psychedelic Experience", Robert Allen Durr explora os domínios da estética literária das obras que serviram como pontos de referência para a geração dos anos 60. Segundo ele existe uma convergência entre o romantismo e os desdobramentos do psicodelismo e da contracultura, especialmente na literatura. A ideia de expansão, seja da consciência, da percepção ou mesmo da capacidade cognitiva do sujeito. No campo da música o romantismo foi marcado principalmente por uma ênfase no virtuosismo. Liszt era romântico. O que eu acho interessante em toda a cena no entorno do Grateful Dead é como se conseguiu criar uma ponte entre esse universo romântico da expressão com o experimentalismo de vanguarda. “Mr (John) Cage se encontra com Franz Liszt no segundo set” (rs). Como foi introduzir para a banda o piano preparado de Cage nas gravações de Anthem of the Sun? (penso que nesse ponto a banda deu um grande salto qualitativo).

Quando você está nessa fascinante selva de criatividade, está muito ocupado surfando nas ondas espumosas de possibilidades para aplicar qualquer modelo. Muitos desaconselharam fazer exatamente isso, embora as palavras variem. Ainda assim, você

percebe padrões. É como os níveis de estrutura de Heinrich Schenker, e eu afirmo que a besta real é mais sutil e complexa do que seu modelo sugere. Isso me lembra a descrição de Charles Ives de ouvir duas bandas marciais ao mesmo tempo. Essa espuma tectônica se torna o show.

A substância da música costumava ser linhas. Melodias. Ponto contra ponto. Então eles começaram a pensar verticalmente (Gioseffo Zarlino, década de 1550), e os acordes entraram em foco. Atualmente a substância da música é: outra música. Sampling, citações, tomadas estilísticas. Bandas de contramarcha. O choque de contextos. Engraçado você mencionar Franz

Liszt. Naquela época, os virtuosi eram improvisadores. Deve ter havido saraus musicais em que Chopin, Liszt ou Mendelssohn simplesmente inventaram tudo, de cabeça. No concerto de 1808 em Viena, onde sua Quinta e Sexta Sinfonias foram executadas pela primeira vez, juntamente com uma lista surpreendente de outras obras, o programa identifica um segmento como “Sr.

Beethoven improvisará ao piano.” Acho que uma grande influência no final do século XX foi a crescente disponibilidade de música por meio da mídia gravada e transmitida. Das paradas do rádio às gravações de campo de todo o mundo (e de volta no tempo, também, à Idade Média). Ouvimos esses sons e eles se tornaram parte de nossa história pessoal. Os psicodélicos adicionaram outra dimensão de espuma artística. O horizonte alargado revelou novos parâmetros a articular. Novas sutilezas de significado para explorar. E cada um de nós tinha a cabeça cheia de ideias de todos os lugares buscando se conectar.

Smoke Rings of My Mind, composição de Constanten e Bralove em seu último disco:

No contexto do Grateful Dead é muito significativo a codificação de um momento específico das apresentações receber o nome de “space”. Logo depois das sessões percursivas do momento “drums” a banda decola para um sobrevoo experimental introduzindo um “princípio de incerteza”. Essa metáfora que se constrói na imagem de um “espaço” musical me lembra muito o Boulez que fascinou Gilles Deleuze e Félix Guattari com o par conceitual “espaço liso” e “espaço estriado”. Aquilo que é imediatamente reconhecido como pertencente a uma forma musical dada e aquilo que vem de outro lugar não necessariamente musical, mas que acaba construindo também um sentido musical. É uma certa forma de pulsação como num quasar. E isso lembra dark star. E lembra também seus anos em Berkeley como estudante de astronomia e música. A música é uma forma de compreensão do universo?

São duas trilhas bem distintas onde arte e ciência se conectam, musicalmente falando. A primeira é em grande parte subjetiva. Impressionista, mesmo. Os planetas de Holst, os Rolling Stones (2.000 Light-Years From Home), Jefferson Starship. A lista

continua. Uma visão poética do Cosmos, acessível a quem não conhece Ganymade da Nebulosa do Anel. O outro é rigorosamente objetivo, como Xenakis. Ele processa os números corretamente, mas a imagem não parece uma galáxia. Sons fascinantes às vezes, mas sem nenhuma associação com o assunto. Combinações desses dois extremos são raras. Até as “aventuras espaciais” de Stockhausen parecem mais um roteiro de Star Trek do que um relatório da NASA. Um estranho curioso seria o Atlas Eclipticalis de John Cage. Eu tinha uma cópia do Atlas Coeli nos meus dias de astronomia (por volta de 1960). Inclui estrelas até 7,75

de magnitude. O modelo de Cage desce para a nona magnitude. Assim, mais estrelas. Ainda assim, apenas transmite a ideia genérica de “espaço”. Não consegui distinguir se estávamos em Sagitário ou Leão pelo que ouvi. Destaco que Cage considerava os gráficos iniciais como uma fonte de aleatoriedade e não se importava com tais padrões. Até certo ponto, eles são ilusões de qualquer maneira. É como uma representação animada da evolução da superfície da Terra ao longo de milhões de anos. À medida que chega à configuração atual, há uma súbita explosão de familiaridade. Os oceanos e continentes aparecem de repente como os conhecemos hoje. Essa é a ilusão que quero dizer. Uma imagem congelada de um processo em andamento. Esses modelos podem ser problemáticos na aplicação em um contexto musical. Como um exemplo extremo, você tem saxofonistas tocando “Mary Had a Little Lamb” no meio de seu solo. Na minha experiência, eles geralmente levam a problemas. Como alternativa, você

pode fazer com que os jogadores trabalhem a partir de modelos diferentes, mas se misturando de qualquer maneira. A mesa de bilhar de Heisenberg.

Jerry Garcia canta Mountains of The Moon, Tom Constanten o acompanha no cravo.
Jerry Garcia canta Mountains of The Moon, Tom Constanten o acompanha no cravo. | Foto: frame do vídeo do Dead no programa de TV After Dark - 1969)/Divulgação

Você participou de três albuns do Grateful Dead e, de acordo com o que li, você acabou saindo da banda principalmente por conta das turnês. Na época o som de um teclado ou de um piano dificilmente sobrevivia à potência de uma banda calçada com guitarras. Com as diferenças tecnológicas de hoje você acha que esse problema seria mais fácil de superar?

Nessa mesma épóca, você participou das gravações de "U", do Incredible String Band. Como foi a sua experiência em tocar com Mike Heron e Robin Williamson?

O maior problema, como você sugere, era que o teclado não podia ser amplificado o suficiente para competir com quatro reverbs do Jerry Garcia cravados no volume 10. Isso significava que minha faixa dinâmica ia de forte a duplo forte. Qualquer coisa abaixo

disso era inaudível. Era como se eu sentisse que precisava gritar para ser ouvido. Não é a gama onde me sinto mais expressivo! A situação melhorou muito ao longo dos anos, mas o problema ainda existe. Quanto ao Incredible String Band, Robin Williamson carregava um vasto tesouro de conhecimento musical. Emprestou credibilidade às suas interpretações; com isso você acaba acreditando que ele foi uma testemunha ocular dos eventos lendários descritos na música. Mike Heron tinha um sorriso mais largo do que o meu rosto poderia conter e, obviamente, havia explorado um pouco a si mesmo, no que diz respeito às tradições

musicais.

* Silvio Demétrio é professor do curso de jornalismo da UEL.

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