Ao longo de mais de meio século de história poucas bandas tiveram tantas formações diferentes como o grupo Soft Machine.

Originalmente o grupo emergiu da cena de Canterbury em meados de 1966 como um quarteto formado pelo guitarrista Daevid Allen, o baixista Kevin Ayers, o baterista e vocalista Robert Wyatt e o tecladista Mike Ratledge. Daevid Allen era australiano e teve problemas com seu visto de permanência ao voltarem de uma turnê na França. A banda então passou a ser um trio. Allen mais tarde vai seguir carreira formando a banda Gong. O primeiro disco de estúdio do Soft Machine vai ser lançado só em 1968 com o trio remanescente. De lá para cá foram 11 discos de estúdio e uma infinidade de gravações ao vivo sempre elaborando uma sonoridade proteica e camaleônica que se metamorfoseou muitas vezes com muitas formações diferentes.

O Soft Machine é um poliedro cuja mais recente face se atualiza agora com uma formação que não conta mais com nenhum dos membros de seu começo nos anos 60. Chega hoje nas lojas físicas e nas plataformas de streaming o 12º álbum da banda. “Other Doors”. As 13 faixas mostram um som encorpado e maduro característico da roupagem jazz-rock que tornou a banda conhecida no mundo inteiro. Ao longo de mais de meio século o Soft Machine percorreu uma linha moldada em vários estilos, partindo do psicodelismo de seus dois primeiros álbuns, o art-rock de Third, seu terceiro trabalho para se firmar no jazz rock a partir dos anos 70.

Capa de “Other Doors”, novo disco do Soft Machine
Capa de “Other Doors”, novo disco do Soft Machine | Foto: Divulgação

A formação atual é composta por Fred Baker no baixo, John Marshal na bateria, John Etheridge na guitarra e Theo Travis no saxofone. De acordo com o site da banda o disco marca a aposentadoria do baterista John Marshal. “É um começo e um final” É uma grata surpresa a revisitação dos primeiros anos da banda quando essa formação apresenta na quinta faixa do disco uma música composta por Kevin Ayers em uma nova e atualíssima versão de “Joy Of A Toy”. O clima de referência no passado da banda reafirma-se no lançamento da versão em vinil duplo que valoriza a arte da capa assinada pelo designer Carl Glover.

O nome da banda é uma referência ao livro do escritor beat William Burroughs lançado em 1961.Composto em parte pela técnica do cut-up (recorte e remontagem de textos aleatoriamente), Soft Machine pode ser entendido como uma novela dedicada ao que mais tarde Michel Foucault vai chamar de biopolítica: a maneira pela qual mecanismos de controle invadem os corpos (daí “máquina macia”).

Não há como não pensar também em O Anti-Édipo de Deleuze e Guattari e o conceito de “máquinas desejantes”. Talvez por aí exista uma pista de como entender as prolíficas e sucessivas formações do Soft Machine. Como podemos entender que a banda seja a mesma se nenhum de seus integranntes originais está presente no disco que é lançado hoje?

É que o Soft Machine é um agenciamento – conceito que Deleuze e Guattari desenvolvem ao longo de sua obra conjunta (“O Anti- Édipo”, “Kafka, Por Uma Literatura Menor”, “Mil Platôs” e “O que É a Filosofia”). Um agenciamento é uma configuração fluxo/corte. O desejo perpassa todos os agenciamentos – ele é a força que os integra e que os faz produzir algo a partir de uma máquina que corta um fluxo. Podemos entender a música como um agenciamento maquínico que corta o fluxo do silêncio como iminência do som. Os indianos têm um nome para esse som que é pura potência. Chama-se anahata. É um “barulho branco”. O som que começa no chakra do coração e está em tudo. Anahata é a própria consciência como puro afeto do mundo. Anahata também é o nome do quarto chakra, o chakra do coração. O som fundamental como um fluxo de uma potência que se corta com a voz e com instrumentos, produzindo música. É assim que se pode usar a metáfora de Burroughs para dobrar a música da banda inglesa que consegue manter-se produtiva com 57 anos de estrada e algumas noções filosóficas da dupla francesa que trabalhava com a ideia dos agenciamentos como fundamento do desejo enquanto produção. É nessa perspectiva que podemos entender o Soft Machine como um agenciamento.

“Other Doors” é um disco que consegue dizer algo de uma nova forma sem perder sua identidade como numa narrativa do cineasta David Lynch que em “The Lost Highway” (“Estrada Perdida”) faz com que um personagem se torne outro numa ambiência que então é próxima do sonho/pesadelo. O fato do Soft Machine continuar o mesmo apesar de ser outro. Cada formação é uma “porta” (“door”). São outras portas que levam a outras salas, todas como partes de um castelo de Kafka. Quando for ouvir, preste atenção no contrabaixo de Fred Baker. Ele diz coisas incríveis nesse disco.

* Silvio Demétrio é professor do curso de Jornalismo da UEL.

A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.