Ainda mastigo a sombra das últimas semanas. Perdi dois grandes amigos que eram antes de tudo pessoas incríveis. Primeiro foi Gutemberg Medeiros. Pessoas que te apresentam a prosa de um Mikhail Bulgakov são importantes. Gutemberg me apresentou esse autor e muitos outros. Nesses últimos tempos trabalhávamos juntos aqui na UEL. Alunos nos fotografavam tomando café no quiosque da dona Elair nos intervalos enquanto a mesquinharia dos dias quaisquer derretia o calendário como uma vela acesa pelas almas perdidas na batalha contra a babaquice.

No começo dessa semana foi Hélcio Kovaleski, que conheci como aluno quando era professor na UEPG. Hélcio era uma alma do teatro. Mas também da poesia e da música. Da literatura.

Pessoas que conversam sobre Becket e Joyce são raras e imprescindíveis, ainda mais quando falam com humor e engenho. O mundo inteiro vinha à mesa do botequim e a conversação não era menos que infinita. Pelo menos quanto à intensidade. O mundo fica um pouco mais oco por conta dessas ausências. É difícil escrever sem ser afetado por essa sombra. Então vou escrever sem respeitar parágrafos. Tudo de uma vez só.

Um fôlego apenas, que é para o abismo não vencer. Porque essa vida é assim, um capricho do acaso, ao mesmo tempo feérica e na mesma medida assustadora. Só consegui escolher como tema para a coluna de hoje o lançamento que traz um Cowboy Junkies assim, soturno e diferente: “Such Ferocious Beauty”, que já está disponível nas plataformas de streaming e foi lançado em vinil também.

“Such Ferocious Beauty”, lançado no último dia 2 de junho
“Such Ferocious Beauty”, lançado no último dia 2 de junho | Foto: Divulgação

Aquele andamento mais sereno com guitarras meditativas e contrabaixo de profundezas abissais mantém-se igual ao de sempre, talvez um pouco mais pronunciado até por conta da pós-pandemia como catalisadora de subjetividades mais graves. É uma “tal beleza feroz”, como no título. Se você nunca ouviu o Cowboy Junkies, é uma banda canadense que fez da trilha dos anos 90 um cenário cheio de som e fúria. Tudo começou em Toronto quando os irmãos Margot (vocais), Peter (bateria) e Michael Timmins convidaram um amigo, Alan Anton(contrabaixo) para formar uma banda. O primeiro disco, “Whites Off, Earth Now” (1986), conseguiu um sucesso considerável mas foi com o segundo disco que o Cowboy Junkies se projetou. “Trinity Sessions” foi lançado em 1988 tornando-se uma lenda. Gravado ao vivo numa igreja e com o uso de apenas um microfone, o disco imprimiu uma atmosfera intimista que a banda acabou assumindo como marca de sua sonoridade dali em diante. Daí esse texto também ser em um parágrafo só, tal como a beleza furiosa do disco-lenda que foi gravado com um microfone só. Procure aí em algum streaming de alguma plataforma a versão de “Sweet Jane” do Cowboy Junkies (a música é do Lou Reed, outro monstro sagrado).

Você nunca mais vai ser o mesmo. Se você já a conhece coloca ela pra rolar de novo.

“Trinity Sessions” é o emblema de uma época e a versão de “Sweet Jane” na voz da Margot sintetiza o que de melhor os anos 90 produziram. Mas o Cowboy Junkies ainda está na estrada e vai muito bem. Ao invés de parodiar a si mesma, a banda tem energia para bancar uma aposta na exploração de novas paisagens sonoras com diferentes texturas sonoras. “Such Ferocious Beauty” traz ao todo 10 faixas que afirmam isso de um jeito singular em cada uma das composições. No jornalismo a gente sempre começa pelo mais importante. Pelo que é decisivo. Chama-se de pirâmide invertida. Com a grande mudança para o digital alguns autores começaram a defender uma pirâmide deitada, tombada, oblíqua. Gosto mais desse último qualificativo. Oblíquo é tudo o que é de banda, de lado, com efeito, de letra. Então começo pelo mais importante, mas assim de letra: “Knives” e “Circe and Penelope” são as mais acachapantes, sétima e quarta faixas respectivamente. Assim com tudo, embaralhado, porque aí misturamos com uma noção que vem da música indiana: ragas são sequências musicais cuja execução e audição se relacionam com momentos do dia. Existem ragas matinais e vespertinas como também ragas que são noturnas. Se fossem ragas, “Knives” e “Circe and Penelope” seriam para audições em noites de plenilúnio. Absolutamente nada é vulgar na voz de Margot. Até ela tossindo deve ser lindo de se escutar. “What I Lost” abre o disco com uma atmosfera de luto pós-pandêmico. O andamento é um pouco mais rápido do que a banda geralmente impõe em suas canções. Soa com uma textura diferente do habitual. Na música seguinte, “Flood”, Michael Timmins explora a saturação e textura de sua guitarra ao extremo num diálogo com a voz de Margot. É música de prospecção. Espeleologia de fermatas profundas atravessadas pelo incontrolável fluxo de microfonias colhidas no jardim de microfones. “Hell is Real” é a quinta faixa, purgatório e limbo entre dois momentos fortes do disco. Encravada entre “Circe and Penelope” e “Shadows 2”, é uma balada acústica que faz a ponte para os climas grandiosos das faixas que a delimitam no disco.

Confira 'Shadows2":

“Shadow 2” é um oximoro – ao contrário do título, é uma canção em tom maior que evoca um clima luminoso para um álbum de penumbra. Tudo aquilo que falei até aqui sobre texturas e sonoridades em clima de exploração criativa se confirma na oitava faixa “Mike Tysson (Here It Comes)”. “Throw a Match” e “Blue Sky” selam a maturidade do Cowboy Junkies chegando à idade da razão. Mas guardei para o último momento do texto a terceira faixa porque ela é especial. Terminar bem um texto é tão importante como começá-lo. “Hard To Build. Easy To Break”. “Difícil de construir. Fácil de quebrar”. Nunca o baixo foi tão protagonista numa gravação do Cowboy Junkies. Musas envelhecem com dignidade porque ficam ainda mais lindas.

Assista ao clipe:

Margot Timmins é uma entidade espectral nascida do orvalho sobre o jardim das musas. Nessa aventura deveras frágil que é viver sob os golpes do tempo só a arte abranda o açoite. Tudo é belo demais porque é trágico. O assombro e o mistério. A fúria e o som. Uma beleza furiosa porque frágil e errante. Tudo pode vir a ser outro num instante qualquer. Assim, num parágrafo só.

Silvio Demétrio é professor do curso de jornalismo da UEL.