Quando o assunto é arte e cultura o que se recomenda é uma dieta onívora – alimentar-se o mais amplamente de fontes diversas. Experimentar de tudo e um pouco mais além. A mais ampla abertura e a mais estrita singularidade parece ser uma fórmula interessante. Buscar o ímpar, o incomparável, o que se afirma por si mesmo independente de rótulos e estereótipos. É nessa dimensão que uma banda como o Grateful Dead trafega porque a sua musicalidade sempre foi aberta, um “work in progress” – um trabalho em constante construção.

O grupo nasceu em 1965, na cidade de San Francisco, na vizinhança do vórtex psicodélico que se estabeleceu a partir da esquina da Haight com a Ashbury. A casa de estilo vitoriano na qual a banda passou a morar de forma comunitária é um ponto turístico da cidade até hoje. O núcleo de integrantes original conta com Jerry Garcia (guitarra solo), Bob Weir (algo que é mais do que uma mera guitarra base), Phill Lesh (baixo), Ron McKernan Pigpen (vocais e teclados) e os bateristas e percussionistas Bill Kreutzman e Mickey Hart – é lindo ver as quatro baquetas subindo e descendo absolutamente sincronizadas. Ao longo dos próximos 50 anos essa formação receberá outros membros, seja como agregados ou então como substitutos. Destaca-se nessa órbita de integrantes que se somaram ao Dead a figura do pianista Tom Constanten, que foi colega de curso (astronomia) de Phill Lesh na universidade. Constanten foi aluno de Luciano Berio e trouxe para a banda a sua dicção mais experimentalista e que foi registrada em 3 de seus álbuns: “Anthen of The Sun”, segundo disco da banda e talvez o mais vanguardista de todos, “Live Dead” e “Aoxomoxoa”. Neste segundo, registrou-se a marca fundamental do então sexteto: as suas apresentações ao vivo marcadas por grandes e intrincadas sessões de improvisação e experimentalismo.

Com o tempo, o Grateful Dead desenvolveu toda uma estruturação de suas apresentações. Os momentos de improvisação evoluíram para “bridges”, “pontes” nas quais a banda criava zonas autônomas entre as músicas do set list com seus improvisos e experimentalismos. São momentos de pura criação como acontecimento. Também com o tempo se desenvolveu uma divisão de sets – o primeiro com músicas mais estruturadas e territorializadas como trampolim para um segundo set de franca experimentação e improviso. Outra característica de seus shows era o momento de exploração percussiva. Os “drums” (tambores) eram esses momentos nos quais Bill Kreutzman e Mickey Hart dialogavam com uma dimensão tribal dos deadheads (como são conhecidos os fãs da banda).

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Quando conheceu a cena deadhead ao ser convidado para um show da banda, o mitólogo Joseph Campbell considerou a relação entre os fãs e o Grateful Dead como o nascimento da última tribo no contexto de uma sociedade industrial. Um dos segredos dessa organicidade certamente foi a política da banda de permitir a gravação de seus shows. Na boca do palco formavam-se verdadeiras “florestas de microfones” dos deadheads que registravam as apresentações. Essa prática depois levou a um escambo entre fãs que classificavam as apresentações gravadas e estabeleciam relações de trocas dessas fitas. Com isto surgiu a iconografia das capinhas das fitas k-7, desdobrando a iconografia que a banda desenvolveu em suas capas de discos e cartazes de shows assinados por gigantes das artes gráficas como Victor Moscoso e Rick Griffin entre outros.

Para você que já conhece e também para quem quer conhecer a banda, o selo Zip City lançou no final do ano passado em CD (duplo) a apresentação do Grateful Dead na Berkeley Community Center gravada em 1971. Uma das melhores fases da banda que nessa altura começava já a soar mais jazzística, mas sem perder o lado mais blues. Como sempre, destaque para o segundo set com uma sessão de “drums” preparando a entrada para “The Other One”, música do segundo disco da banda cuja letra fala do famoso ônibus “Furthur” que era guiado por Neal Cassidy e que tinha como idealizador o escritor Ken Kesey (ele escreveu o livro que deu origem ao filme “Um Estranho no Ninho”). Os improvisos vão desconstruindo “The Other One” até que se chegue por uma “bridge” muito intensa ao grande clássico “Wharf Rat”. Como tríade final a banda emenda “Turn On Your Love Light” com a voz inconfundível de Pigpen com o clássico dos clássicos “Johnny B Good” para daí encerrar com sua assinatura “And We Bid You Good Night”.

Da esq. P. a dir.: Keith e Donna Godchaux, Jerry Garcia, Phill Lesh, Pigpen, Bill Kreutzman e Bob Weir
Da esq. P. a dir.: Keith e Donna Godchaux, Jerry Garcia, Phill Lesh, Pigpen, Bill Kreutzman e Bob Weir | Foto: Internet Archive – domínio público

Quem tiver ouvidos abertos para entender a atitude musical da banda de Jerry Garcia certamente vai experimentar sempre um exercício de liberdade radical e autêntica. Aquela predisposição em acolher o novo e o diferente de forma democrática e aberta. É pela educação dos sentidos que também se forma a autonomia política dos sujeitos. Música e arte em geral de qualidade, seja de que origem for, contribuem para o desenvolvimento de sensibilidades mais apuradas no trato com a diferença e com o novo. Conservadorismo e arte sempre vão ser antagônicos. Viva a diferença! Uma vaia mental agora para quem fez campanha antivacina durante o auge da pandemia.

Silvio Demétrio é professor do curso de Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina