O brilho eterno de uma mente apaixonada pela utopia
Fredric Jameson será lembrado como uma das vozes mais provocativas da crítica radical que moldou o pensamento cultural contemporâneo
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quarta-feira, 25 de setembro de 2024
Fredric Jameson será lembrado como uma das vozes mais provocativas da crítica radical que moldou o pensamento cultural contemporâneo
Silvio Demetrio/ Especial para a FOLHA
No último domingo (22/09) faleceu o grande teórico marxista americano Fredric Jameson. Escrevo sobre Jameson aqui para cravar uma estaca no coração do cretinismo de plantão que recrudesce uma mistura de macarthismo mofado com os segredinhos sujos de uma classe média hipócrita. A figura de Jameson era o contrário disso tudo. Avesso às viseiras, Jameson era um horizonte inteiro e aberto para o pensamento como prospecção de possíveis amanhãs. Faz falta perder uma inteligência como a de Jameson num mundo de adultos infantilizados que voltaram a acreditar no medo do bicho papão e que chamam de “comunismo” tudo o que não lhes cabe no próprio umbigo. A besteira vence um pouco quando perdemos alguém assim.
É porque demora. Uma carreira acadêmica brilhante se faz com uma série de desistências para com o que é mais fácil. Horas intermináveis debruçadas sobre grandes clássicos e com uma leitura cujo fio nasce da doma do aço da experiência. Uma boa metáfora custa alguns quilates de vida. Ser professor de humanidades hoje é estar sob o foco do olho seco do ressentimento disfarçado de bom mocismo. A besteira não. Ela é supersônica e se propaga no ritmo de um vírus pandêmico. Vai de “zap”. O mundo acadêmico perde uma mente que se destacou não apenas pela agudeza de suas análises, mas pela audácia de seu pensamento em expandir os horizontes da crítica. Marxista convicto e teórico cultural de renome, Jameson deixa, após 90 anos de vida, uma obra crítica que atravessa as fronteiras do século XX e adentra com vigor as perplexidades do século XXI. O falecimento de Fredric Jameson representa o encerramento de uma era e seu impacto continuará a reverberar por muito tempo. Ele nos deixa uma obra que não apenas explica o mundo, mas nos desafia a transformá-lo. Em tempos de crise econômica, política e ambiental, suas ideias sobre o capitalismo, o pós-modernismo e a utopia tornam-se ainda mais relevantes. Ele nos lembra que o mundo que habitamos não é inevitável, mas construído, e, portanto, passível de mudança.
Suas ideias mesclam de maneira única literatura, filosofia, sociologia e teoria política, permanecem como marcos fundamentais para a compreensão do capitalismo tardio e das complexas teias do pós-modernismo. Ele não apenas analisou o mundo à sua volta, mas também nos ofereceu ferramentas para questioná-lo, para ver além da superfície e compreender as forças ocultas que moldam nossa realidade.
Nascido em Cleveland, Ohio, em 1934, Jameson cresceu em um mundo ainda abalado pelas consequências da Grande Depressão e pelas turbulências da Segunda Guerra Mundial. Essas experiências históricas marcantes sem dúvida informaram sua compreensão crítica do capitalismo, que ele interpretou como uma força avassaladora, capaz d penetrar todas as esferas da vida social e cultural. Ao longo de sua carreira, Jameson desenvolveu uma crítica ao capitalismo tardio que se desdobrava na análise de suas manifestações culturais, políticas e econômicas.
Fredric Jameson visitou o Brasil em diversas ocasiões ao longo de sua carreira, onde teve a oportunidade de dialogar com intelectuais brasileiros e influenciar profundamente o pensamento crítico no país. Sua presença em seminários e conferências, especialmente durante a década de 1990, foi recebida com grande entusiasmo pela academia local, que via em suas ideias uma importante ferramenta para compreender as dinâmicas culturais e econômicas do Brasil no contexto do capitalismo global. Em suas palestras, Jameson frequentemente explorava as particularidades da modernidade periférica, relacionando o pós-modernismo às condições econômicas e sociais específicas do Brasil, um país que ele considerava crucial para a compreensão das contradições do capitalismo contemporâneo. Um exemplo marcante desse diálogo entre Fredric Jameson e o Brasil foi sua participação no colóquio organizado pela Folha de São Paulo em 1996, por ocasião do primeiro ano após a morte do filósofo francês Gilles Deleuze. O evento reuniu intelectuais de diferentes partes do mundo para discutir o legado de Deleuze e as implicações de sua obra no pensamento contemporâneo. Jameson, em sua intervenção, trouxe uma perspectiva singular ao contrastar o pensamento deleuziano com o marxismo e a teoria crítica, propondo uma análise das influências do capitalismo global sobre as ideias de multiplicidade e diferenciação presentes na obra de Deleuze. Sua participação nesse colóquio consolidou ainda mais sua presença no cenário intelectual brasileiro e demonstrou sua disposição em engajar-se com pensadores de diferentes vertentes teóricas, enriquecendo o debate crítico no Brasil.
Sua obra mais famosa, Pós-modernismo: A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio (1991), estabeleceu um novo padrão de análise para o fenômeno do pós-modernismo. Nessa obra seminal, Jameson argumentou que o que chamamos de "pós-modernismo"; não é apenas um estilo artístico ou uma tendência cultural, mas sim uma lógica cultural profundamente enraizada no desenvolvimento do capitalismo global. Ele viu o pós-modernismo como uma era marcada pela superficialidade, pela fragmentação e pela ausência de um projeto utópico, reflexos diretos de um mundo dominado pelas forças do mercado e da mercantilização de todos os aspectos da vida.
Em sua análise, o pós-modernismo aparece como uma consequência inevitável do capitalismo tardio, uma fase avançada de desenvolvimento econômico em que a cultura se torna uma mercadoria como qualquer outra. O "pastiche", conceito central em sua teoria, é o resultado dessa lógica: uma colagem de estilos e referências sem profundidade, uma imitação sem alma, que reflete a ausência de autenticidade em um mundo onde tudo é consumível. Para Jameson, o declínio das "narrativas grandiosas", as grandes histórias que antes ofereciam uma direção para a sociedade — é sintomático dessa era em que o mercado dita os rumos da cultura e da política.
Jameson, porém, não se contentou em apenas diagnosticar as condições de nossa época. Ele também buscou maneiras de subvertê-las, de oferecer uma crítica que não fosse meramente descritiva, mas que apontasse para possíveis caminhos de transformação. Uma das noções mais importantes de seu pensamento é a de "utopia", que ele não via como uma fantasia idealista ou inalcançável, mas como uma ferramenta crítica indispensável. Para Jameson, a utopia serve como um espelho que nos permite ver as falhas do presente de maneira mais clara, uma maneira de imaginar alternativas que, embora ainda não realizadas, nos ajudam a identificar as contradições e as limitações da sociedade atual. Ao tratar da utopia dessa maneira, Jameson a colocou no centro da imaginação política. Ele acreditava que, sem um horizonte utópico, qualquer tentativa de mudança seria limitada, presa às restrições do presente. A utopia, para ele, não era uma fuga da realidade, mas um instrumento de análise que nos ajuda a questionar as estruturas sociais e econômicas existentes. Sua visão dialética permitiu-lhe ver o movimento da história não como um processo linear ou inevitável, mas como um campo de contradições, onde as forças de mudança e conservação estão constantemente em tensão.
Nesse sentido, sua obra se aproxima das tradições marxistas, mas com uma originalidade que o distingue dos teóricos que o precederam.
Enquanto muitos marxistas focavam na análise econômica e política, Jameson insistia que a cultura — especialmente a cultura popular — também desempenha um papel crucial na formação das consciências e, portanto, na possibilidade de transformação social. Para ele, compreender a cultura era essencial para compreender o capitalismo em sua totalidade.
Ao longo de sua carreira, Fredric Jameson revisitou e reinterpretou os grandes pensadores da tradição ocidental, como Hegel, Marx, Lacan e Althusser, aplicando suas ideias a questões contemporâneas. Ele sempre foi um pensador ousado, disposto a arriscar-se em novos territórios teóricos e a desafiar as ortodoxias de seu tempo. Sua clareza argumentativa, combinada com uma capacidade ímpar de articular questões complexas, garantiram-lhe um lugar de destaque no debate intelectual global.
Como professor em instituições de prestígio como Yale, Harvard e Duke University, Jameson formou gerações de pensadores, influenciando profundamente os rumos da teoria crítica nas décadas seguintes. Sua capacidade de transcender os limites da academia e engajar-se com as questões mais prementes de sua época fez dele não apenas um intelectual, mas um crítico radical, comprometido com a transformação social.
Silvio Demétrio é professor do curso de Jornalismo da UEL e publica a newsletter de cultura: “Tanga, a verdade quase nua”