Sou descendente de ucranianos. Tanto por parte da família da minha mãe (Trush / Berehulka) quanto pela família do meu pai (Demétrio, originalmente algo como Dmitriuv numa transliteração livre). Uma história sofrida de fuga da fome e de pesadelos históricos. Minha avó materna, que a gente chamava de Baba, costumava contar muitas histórias sobre o passado da família. Dona Tecla morou um bom tempo em nossa casa em Apucarana e ela tinha o hábito de ler religiosamente depois do almoço. Lia qualquer coisa – revistas, bulas de remédio (ela tinha fissura por isso) e principalmente romances. Foi ela que me deu o primeiro livro de verdade para ler. "Demian" do Hermann Hesse.

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É algo que eu sempre lembro quando vejo o noticiário sobre essa guerra estúpida tal como todas as outras guerras estúpidas. A placidez da figura de minha avó falando sobre coisas que hoje são objeto de uma manipulação e embustes históricos odientos. Por exemplo, a maneira como é tratado um episódio como o Holodomor é sintoma dessa infelicidade política que vivemos. Fala-se numa polarização. Eu vejo é excesso. Tudo é hiperbólico de uma maneira extremamente regressiva. Vivemos tempos toscos. Ou se usa o Holodomor para avivar a brasa do pânico moral da extrema direita e negar a importância de um evento como a revolução russa, ou então se cai num revisionismo negacionista tão tosco quanto o lado de lá. A fome de 32-33 aconteceu de fato e foi usada estrategicamente dentro das políticas de expurgos do stalinismo. O confisco da produção de grãos aconteceu de fato. A lei que proibia cidadãos guardarem ou procurarem comida foi executada e, obviamente, muita gente morreu de inanição como se sabe.

A história da Ucrânia e sua relação com a Rússia é profundamente complexa para ser reduzida à epistemologia de quinta série das tretas de whatsapp no grupo da família. Sei que fujo um pouco do perfil da minha coluna aqui, mas explico. É que recentemente me chegou em mãos o livro novo do professor Maurízio Lazzarato, “O Que a Guerra da Ucrânia Tem a Nos Ensinar”, lançado pela sempre incrível editora N-1 Edições. Lazzarato é cirurgicamente preciso. De acordo com o filósofo italiano que mora em Paris, o que de principal podemos tirar do conflito é que existe a necessidade urgente de se voltar a pensar a guerra e o conflito como algo inerente à ordem estabelecida pelo capital globalizado. Segundo ele no último meio século aconteceu uma pacificação artificial que despotencializou o pensamento crítico. A ideia fundamental é um retorno à discussão do conflito de classes como horizonte maior que engloba e acirra todas as outras formas de opressão que lhe são interiores como a dominação masculina, o sectarismo, o racismo, o sexismo e toda forma excludente que fabrica a dinâmica de opressão das minorias.

De acordo com Lazzarato a guerra entre Putin e a Ucrânia expõe essa realidade que o discurso sobre a globalização e seus desdobramentos colocaram em movimento. A academia “ficou desarmada” perante a guerra. Algo que visivelmente pode ser constatado em algumas falas de setores da esquerda brasileira que equivocadamente vê em Putin um herdeiro do legado da esquerda soviética.

A capa do livro é também de uma precisão aguda. Traz uma reprodução da imagem do anarquista ucraniano Nestor Makhno. Figura fundamental da revolução e que lembra as suas contradições. Makhno foi usado pelos bolcheviques para derrotar o exército branco dos czaristas e depois foi descartado. Daí para os ucranianos a história da revolução ser muitas vezes vista como uma variação do imperialismo russo. Isso não significa que a Ucrânia seja a pátria da extrema direita como figuras caricatas como Sarah Winter gostariam que fosse. Muito pelo contrário. Como todo o leste europeu a Ucrânia contraiu a escuridão do colaboracionismo com os nazistas. É uma chaga histórica. Tal como a França de Vichy. Mas também isto não significa que o espírito de figuras como Makhno também não construam linhas de fuga num devir libertário (libertário aqui como no sentido próprio da palavra e não no sequestro semântico dos partidários do Instituto Mises).

O que é fundamental é a colocação da pergunta que todo marxista estabelece como ponto inicial para pensar criticamente qualquer coisa: “a quem esse conflito interessa - a quem ele serve?”. O pacote todo é uma bagunça que mistura períodos de longa duração, tramas de gangsteres, conspirações de bilionários para a tutela o estado e uma complexidade cultural que vai muito além do simplismo reinante”. Lazzarato chama nossa atenção para um fato simples. Não podemos esquecer que sobretudo o problema consiste numa guerra que está em curso e que muita gente está morrendo, como sempre. Um livro fundamental não só para se entender essa guerra como também e principalmente entender as forças que a produzem. Só a propósito, é prazeroso saber que moro numa cidade que homenageia um grande anarquista brasileiro como nome de rua. Não sei quem foi o responsável, mas existe uma rua chamada José Oiticica na cidade. José é avô do artista plástico Hélio Oiticica e uma figura histórica do anarquismo no Brasil. Saudações a todos que vivem para construir uma terra sem fronteiras, sem pátrias nem patrões.

Capa do livro com a reprodução da figura do anarquista Nestor Makhno
Capa do livro com a reprodução da figura do anarquista Nestor Makhno | Foto: Divulgação

Serviço

“O Que a Guerra da Ucrânia Tem a Nos Ensinar”, Maurizio Lazzarato

N-1 Edições

Quanto: R$68,00, 134 pgs.

* Silvio Demétrio é professor do curso de jornalismo da UEL.

Serviço

“O Que a Guerra da Ucrânia Tem a Nos Ensinar”, Maurizio Lazzarato, N-1 Edições R$68,00, 134 pgs.