Numa das letras mais importantes do século passado o mestre Dylan cantava “quando você não tem nada, você não tem nada a perder” (when you got nothing, you got nothing to lose” – de “Like a Rolling Stone”. Greil Marcus, o crítico mais importante da revista Rolling Stone escreveu um livro inteiro sobre como essa letra explica muito da contracultura. Foi lançado aqui no Brasil já há algum tempo pela Companhia de Letras e sua leitura é prazer garantido.

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Bob Dylan, que compôs "Like a Rolling Stone"
Bob Dylan, que compôs "Like a Rolling Stone" | Foto: Wikimedia Commons

Um dos melhores textos da história da crítica de rock. Mas voltando à canção de Dylan, sua letra me inspira a dizer coisas que talvez não tenham sido ditas o bastante.

É então que eu me lembro de um outro livro. Pequeno no tamanho, no número de páginas e em sua tiragem. “Nada É Sagrado, Tudo Pode Ser Dito” (Editora Parábola), do belga Raoul Vaneigen. Como todas as obras desse autor, esse pequeno livro é pura dinamite. Vaneigen foi um dos principais nomes do Maio de 68 na França e uma das principais referências do situacionismo junto com Guy Debord. Como no título de seu livro, apesar dos pudores, não há por que não falar de absolutamente tudo.

Raoul Vaneigen, autor de “Nada é Sagrado – Tudo Pode Ser Dito”
Raoul Vaneigen, autor de “Nada é Sagrado – Tudo Pode Ser Dito” | Foto: Wikimédia Commons

Apesar da posição de vanguarda do pensamento crítico que Vaneigen e os situacionistas ocupam, essa é uma ideia não tão nova assim. O poeta inglês John Milton já a defendia em seu famoso discurso ao parlamento britânico em seu Aeropagítica, publicado pela primeira vez em 23 de novembro de 1644. Até onde sei esse discurso é um marco na instituição da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão no Ocidente. De acordo com Milton o fato de publicar e difundir ideias, por mais que elas sejam destoantes dos costumes, dos padrões e normas vigentes, necessariamente isso não leva a sociedade à decadência. Aqui no Brasil temos uma tradução impecável apresentada numa edição supimpa porque bilíngue que saiu pela Topbooks.

John Milton, autor de “Areopagítica”
John Milton, autor de “Areopagítica” | Foto: Reprodução

Ainda nesse campo de memórias e referências sobre a liberdade como condição é inescapável a figura do escritor e jornalista britânico George Orwell. Autor do clássico distópico “1984”, Orwell colocou na consciência do protagonista de seu livro o seguinte pensamento: “Liberdade é ser livre para dizer que dois mais dois são quatro. Se isso estiver garantido, todo o resto é consequência."

O socialista/anarquista George Orwell, autor de “1984”
O socialista/anarquista George Orwell, autor de “1984” | Foto: Wikimédia Commons

Nesse ponto nos encontramos a maio caminho do fim desse texto. Então vamos exercitar o que até agora apenas prometemos. Vamos lá:

É certo que muita coisa se tornou eficiente de um ponto de vista estritamente técnico com as transformações impostas ao jornalismo pelas novas tecnologias da informação, mas é também uma verdade silenciada em todas as redações dos meios de comunicação que a internet serviu para aumentar a carga de trabalho, desregulamentar o setor e diminuir os salários até o ponto de inviabilizar a atividade de um ponto de vista profissional muitas vezes. Estamos adentrando a uma era de um neopublicismo – situação que vigorava no chamado pré-jornalismo que se exercia num período pré-revolução francesa.

Outra constatação incômoda e que abala a liberdade de expressão porque uniformiza por demais os discursos que circulam pela sociedade. As novas gerações abandonaram o hábito de lerem jornal. A prática que substitui os jornais nesse recorte etário é uma forma de leitura fragmentada, pontual e dispersiva própria dos suportes de texto eletrônico quando não a total ausência de leitura. É como se operássemos um “desletramento”, um movimento inverso ao que ocorreu na gênese da modernidade com a Reforma Protestante e sua consequente expansão do público leitor no Ocidente. O sucesso do Tik Tok e, por que não, até mesmo o Instagram dão a medida dessa derrota.

Estamos nos afastando cada vez mais numa névoa de mistificações que pouco a pouco erode as práticas midiáticas como expressão de um projeto emancipatório dos sujeitos na modernidade. O devir que tinha na transparência e disponibilidade do saber seu fundamento vai se tornando opaco em função do bloqueio realizado por palavras de ordem e interdições que homogeneízam a cultura segundo padrões de desempenho que só interessam ao mercado.

Daí a sanha pós-moderna das releituras. Da incapacidade de criar. De romper com o que já está dado. Em ser segundo o rigor do que significa ser moderno. Disso tudo concluo lembrando de um autor seminal dos anos 60 e que era referência fundamental na formação de muita gente dos movimentos políticos e culturais dessa época, o filósofo Herbert Marcuse, autor, entre outros, de O Homem Unidimensional (Edipro). Fui buscá-lo aqui na estante ao meu lado para que esse livro me acompanhe durante essa semana. Nele Marcuse alertava para o perigo de se construir um novo pesadelo totalitário nas sociedades industriais que acabam uniformizando as próprias subjetividades. É imperativo que cada um sonhe segundo a sua singularidade. Quando os sonhos se tornam massivos é porque a liberdade se foi.

O filósofo alemão Hebert Marcuse, autor de “O Homem Unidimensional”
O filósofo alemão Hebert Marcuse, autor de “O Homem Unidimensional” | Foto: Reprodução

Conservar a liberdade como fundamento político da sociedade é preservar o direito à singularidade. Única prática conservadora progressista possível porque ela se auto-anula. Um grande paradoxo: repetir sim, mas repetir a pura diferença. Correr o risco. Criar sempre. Inventar novos modos de vida. Tudo o mais é armadilha. Cuidado com quem canta a liberdade com palavras de ordem. Dylan, Vaneigen, Milton, Orwell e Marcuse formam um pentagrama aqui para conjurar essa cilada facistóide que teima em deixar os corações e mentes do sul e sudeste do Brasil. Dia de patriotismo é 7 de setembro e escola não é quartel. Cuidado com golpes.

Dois minutos de exercício de ódio na adaptação para o cinema de 1984.