A gente se sente bem e confortável no mundo quando pensa que por sermos brasileiros temos pelo menos algo em comum com alguém como Milton Nascimento. Agradecido por estar vivo até aqui para poder acordar de manhã e se deparar com um presente que chega pela imaterialidade da rede mundial de computadores na forma de música. Finalmente saiu o disco de Milton e Esperanza Spalding. As gravações de “Milton + Espreranza” aconteceram em 2023 e “Outubro”, uma faixa-teaser, começou a assanhar os ouvidos ávidos pela grandiosidade desse oceano musical desde maio passado quando começou a ser divulgada pela rede.

Agora o disco todo está disponível nos streamings. São 16 faixas que registram o encontro de Milton com o universo jazzístico da contrabaixista Esperanza Spalding. E Milton, além da voz absolutamente singular e da musicalidade que o mundo conheceu a partir de suas composições acompanhadas quase sempre pelo violão, também tocava contrabaixo no começo de sua carreira – depois incidentalmente em algum show ou participação especial.

Talvez venha daí a química entre ele e Esperanza. O disco todo é de uma coesão rara.

O álbum traz uma fusão rica de jazz, música brasileira e influências diversas que se refletem tanto nos arranjos quanto na escolha dos músicos. O álbum foi produzido e arranjado por Spalding, que trouxe consigo sua banda base, incluindo Matthew Stevens na guitarra, Leo Genovese no piano, Justin Tyson e Eric Doob na bateria, além de Corey D. King nos vocais e sintetizadores. Juntam-se a eles renomados músicos brasileiros como Lula Galvão, Guinga e a Orquestra Ouro Preto, que adicionam um toque autêntico e profundo ao projeto.

Um dos destaques do disco é a faixa "Outubro", originalmente lançada em 1969, que ganha nova vida com a dinâmica vocal de Nascimento e Spalding. A Orquestra Ouro Preto também brilha em faixas como "Morro Velho" e "Wings for the Thought Bird", esta última contando com a participação de Elena Pinderhughes. O álbum também presta homenagem a Wayne Shorter, mentor de Spalding, com uma versão expansiva de "When You Dream", encerrando o disco de forma poderosa e emotiva.

A colaboração entre Nascimento e Spalding nasceu de um encontro dos dois que foi promovido por Herbie Hancock. A apresentação resultou na amizade e eventual parceria musical entre os dois artistas. Este álbum foi gravado em grande parte no Rio de Janeiro, ressaltando a importância da autenticidade e da conexão cultural na criação deste trabalho.

Esperanza Spalding, que também atuou como produtora do álbum, consegue equilibrar a reverência pela obra de Milton Nascimento com sua própria visão artística. O uso de músicos brasileiros em conjunto com sua banda de jazz proporciona um intercâmbio cultural rico e dinâmico. A produção é limpa e sofisticada, destacando as vozes e os instrumentos.

Algumas faixas que servem de exemplo desse encontro multicultural de sonoridades:

Cais

A faixa "Cais" é um dos pilares do álbum, uma canção originalmente lançada em Clube da Esquina (1972). Nesta nova versão, Spalding opta por um arranjo que acentua a atmosfera onírica da música. As harmonias são ampliadas com o uso de sintetizadores e a delicadeza do piano de Leo Genovese, criando uma cama sonora etérea que realça a beleza melódica da canção. A interação vocal entre Milton e Esperanza é o ponto alto: a voz de Milton, ainda inconfundível, é complementada pela suavidade e flexibilidade vocal de Esperanza, que respeita a melodia original enquanto adiciona nuances jazzísticas. O resultado é uma performance que honra o passado enquanto o reinventa para uma nova geração.

Algumas outras faixas que se destacam (embora o disco seja todo esquilibrado):

Morro Velho

Em "Morro Velho", Milton e Esperanza exploram as raízes folclóricas da música brasileira. O arranjo de Spalding mantém a simplicidade melódica da canção original, mas a enriquece com nuances jazzísticas, incluindo solos improvisados que adicionam um frescor contemporâneo. A participação da Orquestra Ouro Preto aqui é particularmente tocante, trazendo uma riqueza harmônica que ecoa a vastidão da paisagem rural descrita na letra. A interpretação vocal de Milton é impregnada de nostalgia, enquanto Esperanza oferece uma contraparte que é tanto reverente quanto exploratória.

Wings for the Thought Bird

Esta composição original de Esperanza Spalding se destaca por seu espírito inventivo e celebra a liberdade criativa. A faixa é uma viagem sonora, que combina elementos de jazz, música experimental e a rica tradição da MPB. A Orquestra Ouro Preto e a flautista Elena Pinderhughes colaboram para criar uma textura sonora que é ao mesmo tempo exuberante e introspectiva. A produção é marcada pela clareza e pelos detalhes, com cada instrumento e voz ocupando seu espaço de forma nítida, mas interconectada.

Interlude for Saci / Saci

Essas faixas funcionam como um momento de respiro no álbum, onde Spalding e Milton se aventuram por uma paisagem sonora mais experimental. "Interlude for Saci" é uma peça curta que se apoia em texturas abstratas e vocais etéreos, enquanto "Saci", que conta com a participação do guitarrista Guinga, retorna a uma estrutura mais tradicional, porém com uma pegada rítmica mais solta e improvisada. A produção aqui é delicada, permitindo que a espontaneidade dos músicos brilhe sem interferências. Com sua mistura de antigos clássicos de Milton e novas composições de Spalding, Milton + Esperanza se é uma obra que não apenas celebra o passado, mas também aponta para o futuro da world music.