Em seu ABC da Literatura Ezra Pound dizia que poesia é linguagem carregada de sentido. De acordo com o poeta existem três aspectos que possibilitam esse acréscimo de sentido à linguagem. Poetas conseguem saturar as palavras de sentido investindo em sua sonoridade – é o aspecto da melopeia. É o que mais aproxima a poesia da música. Palavras podem ser cantadas e quando elas assim o são elas voam. Outra maneira de carregar a linguagem de sentido é provocando insights. Iluminações. Satoris – Pound chama essa dimensão de logopeia: a linguagem se torna poética pela capacidade que tem em disparar ideias,

abstrações. Uma terceira forma de fazer a linguagem voar é investindo em sua potência de evocar paisagens. Visões. Carregar a linguagem de uma certa vidência. Essa última dimensão é a fanopeia.

Por que então abrir o texto com um anti-lead? Não estamos falando sobre literatura aqui, mas do lançamento de um álbum. E não é um álbum qualquer. É um álbum que se desdobra de outro álbum. É “This Is A Photograph II” que o arauto do low-fi Kevin Morby acabou de lançar e que já está disponível nas principais plataformas de streaming. Usamos um anti-lead (o que a velha guarda do jornalismo chamaria de nariz de cera) para explicar o conceito de fanopeia antes de tudo o mais. É porque “This Is a Photograph II” é um disco que aciona o poder de imaginar . Não só a partir do título, mas principalmente nas letras e sua dinâmica de interação com a melodia das canções. É a consagrada forma da canção elevada à vidência. Morby é um xamã. Suas letras são encharcadas de fanopeias e sua música só as catalisa ainda mais.

“Triumph”, de Kevin Morby:

Homônimo do álbum lançado no ano passado, “This Is a Photograph II” só reforça o clima de introspecção que é uma constante ao longo de toda a discografia de Morby até aqui. Ao todo o disco apresenta nove faixas. A terceira, Bittersweet Tennessee, conta com a participação de cantora e também compositora Erin Era e já havia sido divulgada previamente quando o álbum estava ainda sendo produzido. Diferente da versão que foi divulgada por um clipe na plataforma do Youtube, a versão do álbum lançado agora é mais melancólica e com um clima muito mais intimista – ficou arrasadora. Lembra muito o universo indie de coisas como o Mojave 3 ou do Wilco. Cada letra das composições menciona de alguma maneira uma relação entre imagem e memória.

A arte da capa mesmo é uma tradução conceitual dessa ideia estética que atravessa o álbum. Uma montagem com fotos de vários fragmentos de uma paisagem que mostra um Kevin Morby barbudo de pé sobre o leito seco de um riacho com uma ponte ao fundo – lembra um pouco a imagem da caverna da série alemã Dark. É uma montagem ao estilo das que o artista plástico David Hokney fazia com suas polaroids. Um detalhe a ser checado: a imagem parece mostrar o riacho da locação na qual o clipe de Bittersweet Tennessee foi gravado – o riacho está seco.

E cada signo convocado por Morby em suas letras recupera um imaginário de grandes “wide open spaces” (grandes descampados) e solidão como no clássico Paris Texas, referência fundamental do cinema outsider de Win Wenders. Algo que fica muito evidente na letra de Triumph. Uma balada cuja letra autoriza qualquer uso como trilha para um road movie. Morby

brinca com a ambivalência do nome da marca do automóvel (Triumph) e o sentido de triunfar ao qual ela remete.

“Going To Prom” retoma o tema da fotografia como uma janela de memória. Talvez a palavra que você mais vai ouvir nesse álbum é “photograph”. É o que se sugere da capa até o último verso da última canção. “Lion Tamer” tem uma batida de blues 4x4. Mais uma balada lírica com “A Song For Katie” precede a segunda faixa mais executada do álbum, “ Five Easy Pieces Revisited”. A faixa seguinte, “Mickey Mantles Autograph”, é mais uma que seguramente deve render comparações à sonoridade do Wilco. “Kingdon Of Broken Hearts” levanta o clima de grand finale para Kevin Morby celebrar o dissabor adocicado da melancolia.

“Bittersweet Tennessee”, de Kevin Morby:

Passando a régua do derradeiro parágrafo da semana, “This Is A Photograph II” é um álbum no clima para atravessar o inverno assim do jeito que só quem vive no interior e longe dos grandes centros conhece. É que às vezes o escuro opaco do café é só um disfarce para a bile negra na qual todos nós nos afogamos. Momentos de luz e sombra. Uma figura em preto e branco, como uma fotografia.

(Foto 1b – legenda)

Capa do álbum “This Is a Photograph II”, de Kevin Morby.

(Vídeo para ilustrar – são todos oficiais)

“Triumph” - https://www.youtube.com/watch?v=-lGEErnBCJA

“Bittersweet Tennessee” - https://www.youtube.com/watch?v=rwwyXYeBPXU