Lembro de uma aula de Estética com o professor Leon Kossovich na FFLCH-USP na qual ele disse que um texto teórico o qual você entende tudo numa primeira e única leitura é um texto que não vale a pena ser lido. Leitura que se preza demanda paradas, retomadas, abandonos e reconciliações com o texto. Decifrações e redescobertas. Insights. Uma boa leitura demanda tempo. Theodore Adorno já recomendava cautela com a cultura aligeirada. Um bom texto é um enigma. Um labirinto cujas frases são caminhos que muitas vezes se bifurcam. E não é diferente com um bom filme.

O cinema de Jean-Luc Godard é um exemplo fundamental dessa demanda por tempo na fruição de uma obra de arte. Desde o começo de sua trajetória Godard tem antes de tudo o cinema como o grande objeto em todos os seus filmes. É de uma auto-referencialidade exemplar de um espírito moderno. E o público cinéfilo de Londrina e de toda região está tendo a oportunidade de ver os principais filmes da primeira fase das produções do diretor na grande tela do Espaço Villa Rica. Quem organizou o evento foi o cineasta londrinense Rodrigo Grota e a Kinopus, com o suporte e apoio da embaixada da França no Brasil que disponibilizou super cópias restauradas dos filmes. É um grande privilégio poder assistir grandes clássicos de Godard numa tela como a do Villa Rica.

Participei como convidado da sessão e do debate logo após a exibição do primeiro longa de Godard, "Acossado", que aconteceu no sábado passado (22). Grota chamou também como convidada para discutir o filme a atriz Luli Rodrigues. O público compareceu em peso e o evento foi vitorioso e heroico. Falo isso porque a sessão começou às 15h00, com o filme durando pouco menos do que uma hora e meia, a maior parte do público permaneceu para o debate que se estendeu até as 19H00 com ampla e marcante participação.

Confira o trailer de Le Mépris, em exibição neste sábado (29)

O cinema de Godard não é dos mais fáceis. Mesmo em sua primeira fase na qual prevalece uma forma mais narrativa, mesmo assim existem muitas referências no subtexto da trama que se desenrola na grande tela. Além disso o diretor franco-suíço recorre vigorosamente a toda sorte de experimentalismos como 'false raccords', quebras de eixo, efeitos de montagem e também explorando ao máximo um repertório muito amplo de referências à história do cinema. É que antes de ser diretor de cinema, Godard participou ativamente da famosa revista Cahiers Du Cinema como crítico. Fazer cinema para ele é antes de tudo conectar essa bagagem crítica com os filmes que dirigia.

Foi uma experiência gratificante mergulhar na polissemia de "Acossado", filme de 1960 com Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg. O filme originalmente foi concebido por François Trufault, que escreveu a estória. Rodado em preto e branco, Acossado conta com um elenco reduzido, captação direta do som ambiente e uma profusão de tomadas externas feitas com câmera na mão – tudo para baixar o orçamento. É um filme emblema do início da Nouvelle Vague, movimento que vai servir de inspiração para o nosso Cinema Novo. “À Boute de Suffle”, título original em francês significa literalmente “Sem Fôlego”. A narrativa do filme é centrada na fuga constante do protagonista Michel Poiccard vivido por Belmondo. Com um cigarro aceso pendendo da boca praticamente a narrativa quase inteira do filme, o personagem de Belmondo vive realizando furtos de carros e ao iniciar uma viagem com um desses carros para Paris logo no começo do filme ele acaba por matar um policial rodoviário, motivo do início de sua fuga desenfreada. Chegando a Paris ele se encontra com Patrícia (Jean Seberg) e a convida insistentemente para que ela vá com ele para Roma. Formado o par de personagens discutimos no debate a referência crítica de Godard como uma discussão na qual Poiccard encarna metaforicamente o cinema indústria hollywoodiano e narrativo, portanto, enquanto Patrícia com seus momentos disjuntivos acaba por contrair em sua densidade dramática o cinema experimental da Nouvelle Vague.

Comentei a partir de uma pergunta de um participante do debate que entendia essa configuração dos personagens a partir de uma ideia do filósofo francês Gilles Deleuze. Poiccard e Patrícia são personagens conceituais – eles desdobram ideias e noções que estão para além de suas narrativas, funcionando num plano abstrato mesmo. Luli Rodrigues e Rodrigo Grota elevaram a discussão ainda mais com suas leituras. Luli fez toda uma leitura do personagem vivido por Jean Seberg e Grota pontuava a todo o momento a discussão com dados e referências que tornaram a tarde uma verdadeira aula sobre cinema. É enriquecedor e gratificante poder participar de momentos assim. Londrina sempre teve essa vocação para a cultura e as artes e é comovente ver isso renascendo espontaneamente no coração da cidade.

Acredito que aquela esquina onde fica o Villa Rica deve ser frequentada pelo espírito do poeta Torquato Neto. Ele era piauiense e a esquina é entre a Rua Piauí e a Rio de Janeiro, cidade que recebeu o poeta que também era jornalista e gostava de escrever sobre o cinema marginal brasileiro (movimento que tinha em Godard uma referência muito forte).

Brigitte Bardot (Camille) e Michel Piccoli (Paul Javal) em Le Mépris ( 'O Desprezo'): filme em exibição na mostra Godard neste sábado (29), em Londrina
Brigitte Bardot (Camille) e Michel Piccoli (Paul Javal) em Le Mépris ( 'O Desprezo'): filme em exibição na mostra Godard neste sábado (29), em Londrina | Foto: Institut Français e Cinemateca da Embaixada da França no Brasil/ Divulgação

Amanhã é sábado mais uma vez e novamente Godard e o fantasma de Torquato Neto vão assombrar os olhares do público londrinense com suas belezas cinematográficas complexas.

Começa a partir das 15H00 a exibição de Le Mépris (“Desprezo” em francês), filme de Godard estrelado por Brigitte Bardot. Tudo na tela grande e com imagem e som restauradíssimos.

Vamos apoiar essa campanha em prol de uma tarde de sábado dedicada ao cinema de invenção e ao espírito moderno e progressista de Londrina. É nesses eventos que se forjam sensibilidades que captam os devires. É assim que se combate o ódio e o obscurantismo. Arte e cultura para todos.

SERVIÇO

Mostra Godard

O Desprezo (Le Mépris, 1963, 103 min)

Onde: Espaço Villa Rica (R. Piauí, 211)

Sábado (29), às 15h

Debate com Gustavo Ramos e Layse Barnabé

Ingressos: R$ 12,00, à venda em villarica.com.br/ingresso

Debates gratuitos após a exibição de cada filme na Sala Londrina

* Silvio Demétrio é professor do curso de jornalismo da UEL, escreve às sextas-feiras na FOLHA.