Foi August Strindberg, o dramaturgo e escritor sueco, quem escreveu que os peixes do fundo do mar eram fotografias coloridas e vivas. Isto porque a cor das escamas vem da presença do nitrato de prata, pigmento que numa fotografia analógica é responsável pela captação da luz.

A cor das escamas advém de uma reação química à luz e para Strindberg aí se encontra o que torna os peixes coloridos uma forma “fotografia natural” do fundo do mar. Essa reflexão está “Inferno”, uma prosa autobiográfica que o autor publicou em 1879 relatando o período que passou por uma grave crise mental.

Simbolicamente peixes são habitantes das profundezas e o elemento água sempre será associado ao inconsciente. Seguindo então a intuição de Strindberg podemos então pensar uma imagem fotográfica como o resultado de um processo que “revela” algo que está imerso numa dimensão inconsciente. Que foge de uma percepção imediata para se tornar visível apenas depois no processo de “revelação” – uso as aspas aqui para demarcar que a revelação aqui diz respeito ao processo de significação da imagem fotográfica e ao mesmo tempo o processo químico que é fundamento da fotografia analógica. Há numa imagem fotográfica então algo que é da ordem daquilo que os psicanalistas chamam de elaboração. Um “trabalho do inconsciente”. Algo que não está visivelmente presente na fotografia como enunciado se faz sentir aos olhos e à percepção de quem olha. Fotografamos ausências, aquilo que nos falta.

A imagem como superfície de inscrição do desejo. Imagem-escama. Imagem-pele. Assim como o Eu-pele de Didier Anzieu – a pele como análoga ao ego enquanto estrutura uma vez que cumpre as mesmas funções (envolver, conter, separar...). Fotografias são escamas de algo que vive e se desloca nas profundidades, como a truta que Escher desenhou em sua obra “Três Mundos”.

Três Mundos, de Escher
Três Mundos, de Escher | Foto: Reprodução

O tempo da fotografia é o tempo da diferença. O tempo do intervalo. O tempo qualquer. O tempo O QUAL QUER. O desejo do tempo. Quod Libet. “Aquilo que quer” em latim. O instante fatiado de uma duração. Numa fotografia o movimento é captado em sua potência. A iminência. A vontade. A potência como vontade. Inercial. É daí que me vem a memória de uma imagem fotográfica que recentemente completou 60 anos de sua captação. As gerações mais novas a conhecem porque ela figura a capa de um disco importante dos últimos 30 anos: o primeiro disco da banda Rage Against the Machine, de 1997.

A imagem do monge que se auto-imolou no dia 10 de junho de 1963 em protesto às políticas do então presidente do Vietnã Ngô Đình Diệm que criaram uma crise religiosa. Num país cuja população na época era constituída em 90% de budistas o presidente que era católico resolveu privilegiar a minoria católica com cargos nas carreiras do serviço público e nas forças armadas.

Os budistas então organizaram um protesto que chegou a ser divulgado para a imprensa, mas muitos correspondentes na época não deram muita importância ao aviso. Algo iria acontecer na frente da embaixada do Camboja e o fotógrafo Malcolm Browne da United Press resolveu conferir. Suas lentes captaram o que aconteceu: cerca de 350 monges formavam um cortejo caminhando suavemente atrás de um Austin Westminster Sedam (que aparece estacionado por detrás do monge na foto). Monges desceram do automóvel e espalharam combustível no chão e nas roupas do monge Quang Duc que logo após sentou-se placidamente em posição de lótus sobre a poça de combustível para riscar um fósforo e atear-se fogo em sinal de protesto.

A imagem é forte demais pelo silêncio que emana da cena que foi captada.

As chamas consumiram o monge que ficou ali sentado impassível e alheio à dor em seu gesto de sacrifício. Como imagem nascia um dos ícones mais fortes de uma década conturbada e violenta. Os anos 60 só foram flores para os roteiristas de Hollywood, para as gravadoras que empurravam hits de pop bubblegum para a massa e para quem quer mistificar alguns eventos históricos.

Quang Duc foi a versão mais hard core da não-ação de Ghandi. É uma imagem do real entrando em combustão. Como elemento o fogo significa transformação. O monge grita por permanecer impassível dentro das chamas que o consomem. A imagem de um grito que por saturação chega ao silêncio. Um dos momentos mais fortes de uma atividade e, porque não, também uma arte, que é o fotojornalismo – profissão que as novas tecnologias também estão diluindo cada vez mais nos jornais.

As imagens que começam a prevalecer principalmente na mídia digital são de outra natureza.

A alta incidência de frames de câmeras de segurança, de imagens enviadas por leitores que as captaram com câmeras de celular não são fotografias no mesmo sentido das imagens que são produzidas por um repórter fotográfico. Tanto em seu elemento técnico – elas são eletrônicas, portanto seu suporte é virtual, como o olhar fundamentalmente é outro. São processos de subjetivação distintos. A imagem captada por Malcolm Browne e relançada pelo Rage Against the Machine é um ícone que marca um acontecimento. São 60 anos queimando aquele monge diante de nossos olhos, tão impassíveis e silenciosos quanto os do monge Quang Duc porque são olhos que nos fitam do lado de lá de um espelho. Coincidentemente, a efeméride do dia de hoje é a morte de Nietzsche. O filósofo que advertia por cuidado ao se olhar para um abismo morreu há 123 anos no dia 25 de agosto de 1900.

*Silvio Demétrio é professor do curso de jornalismo da UEL.