E o festival de infelicidades segue adiante. Aquele manancial de coisas que nunca deveriam ter sido ditas como o infeliz que escreveu que “o filme é premiado, mas não vale a pena ir ao cinema”. Tomou, está tomando e tomará ainda mais em sua testa cada prêmio de “Eu Ainda Estou Aqui”. Mas não basta. A vontade de suscitar a vergonha alheia parece não ter fim. Desse universo que nasce da leitura da orelha de livros misturada com a perversão da história (só lembrando Freud que dizia que a perversão nasce de uma subversão do uso de um objeto), não perdoam nada em sua sanha de distorcer o que for para justificar segredinhos sujos bem pouco republicanos e avessos a qualquer horizonte de democracia.

Como diria Slavoj Zizek em O Guia Pervertido da Ideologia, sempre que cantam a redenção da humanidade (como na 9ª de Beethoven), devemos prestar atenção em quem está ficando de fora. E o nome Zizek me lembra de como eram conhecidos os encarcerados nos Gulags – os campos de trabalho forçado que existiam na URSS. Os prisioneiros eram conhecidos como Zeks.

A palavra GULAG vem da sigla em russo ГУЛаг (GULag), que significa Главное управление лагерей" (Glavnoe Upravlenie Lagerei), traduzido como "Administração Geral dos Campos".

Era o órgão responsável pelo sistema de campos de trabalho forçado na União Soviética, principalmente durante o governo de Stalin. Com o tempo, "Gulag" passou a designar não apenas a administração, mas todo o sistema repressivo de campos de prisioneiros. Uma sombra espessa de dor e sofrimento se forma no entorno dessa palavra toda vez que ela é pronunciada ou escrita.

É que a história dos Gulags é algo por demais sofrido para ser distorcido em prol da defesa, por exemplo, dos que foram presos por embarcarem numa aventura antidemocrática naquele fatídico 8 de janeiro aqui em Pindorama. E é assim que se identifica a extrema direita hoje. O ataque é sempre sobre as liberdades garantidas pelo Estado de Direito mas tudo é feito apelando-se exatamente a esse mesmo Estado de Direito como garantia.

Não se pode banalizar os Gulags. Não se pode banalizar nenhum documento da dor humana assim como uma obra capital da modernidade tal como é a obra de Kafka. Não existe paralelo algum entre o que acontecia num Gulag e o Brasil de hoje. O mesmo vale para o autor de O Processo. Deixem Kafka e sua obra em paz. Deixem Kafka com quem realmente estuda a sua literatura complexa, rica e infinitamente maior que essa mesquinhez intelectual desonesta.

Existem sim hoje duas situações que lembram esses campos de trabalho forçado como controle político e ideológico e o absurdo do poder quando ele se torna arbitrário: Gaza e Guantánamo. E ambas são frutos de um espectro político que vai do neoliberalismo à extrema direita. O encarceramento industrial, tal como o oferecido pelo atual presidente de El Salvador ao bufão alaranjado. Quem banaliza a história dos Gulags coloca-se ao lado destes.

Uma grande parte dos desenhos de Baldaev é impublicável no jornal
Uma grande parte dos desenhos de Baldaev é impublicável no jornal | Foto: Reprodução

Quer saber o que era um Gulag de verdade pesquise na internet sobre Danzig Baldaev – ele foi carcereiro no sistema dos Gulags e ao longo de 40 anos captou essa triste realidade com seus desenhos. Baldaev foi uma espécie de Carlos Zéfiro do submundo carcerário. Falecido em 2005 coletou material suficiente para publicar uma enciclopédia das tatuagens dos presos políticos do sistema. Eu sinceramente prefiro o nosso Zéfiro, que se tornou popular para uma geração mais nova graças a capa de um disco de Marisa Monte.

O Brasil não tem absolutamente nada a ver com essa história. Agradeço todos os dias por meus bisavós terem imigrado para o Brasil – uma parte da família ficou na Ucrânia e outra imigrou para o Canadá (nos redescobrimos todos pouco antes da pandemia e da guerra da Ucrânia graças à internet).

Quem pede por anistia de quem cultua torturadores distorcendo a história de resiliência de um povo assombrado pela sombra de regimes que instituíam a tortura e a arbitrariedade absoluta está agindo contra o Estado de Direito como garantia da Democracia. É aí que Zéfiro se torna quase uma metáfora quando lembramos que suas publicações eram conhecidas como “catecismos” – porque muitas vezes, mesmo quando a alusão é à santidade, no domínio das relações humanas (a política portanto) o que pode estar em jogo é um pot- pouri de sacanagens. Em outros termos, muitas vezes o santo é do pau oco mesmo. E viva o Carnaval, a melhor metáfora da liberdade vivida em sua essência. Como naquele refrão popular, que não gosta disso bom sujeito não é. Foliões de todo o universo, brincai-vos!

Capa de um “catecismo” de Carlos Zéfiro
Capa de um “catecismo” de Carlos Zéfiro | Foto: Reprodução

* Silvio Demétrio é professor do curso de Jornalismo da UEL