Durante os entediantes dias de lockout na pandemia, o Metropolitan Opera de Nova York disponibilizou pela internet alguns de seus espetáculos na íntegra. Foi o caso da ópera Satyagraha composta por Philip Glass, exibida em streaming aberto e gratuito no dia 23 de abril de 2021. Para quem estava trancado e escondido do obscurantismo que estava lá fora junto com o vírus da COVID, uma noite com a oportunidade de assistir por inteiro uma obra de Glass pelo computador foi algo reconfortante.

Glass é um compositor minimalista que já se apresentou no Brasil várias vezes – trabalha com padrões de repetição e é muito conhecido pelas trilhas que fez para o cinema e principalmente pelos espetáculos de dança e óperas que tornaram sua música uma experiência sensorial a partir dos palcos (lugar onde ele é soberano).

O libreto da ópera é sobre a vida de Mahatma Gandhi e suas relações com personagens históricos como o escritor russo Tolstói e o líder pelo movimento dos direitos civis na América, Martin Luther King.

Estar trancado em casa era uma forma de “satyagraha” (não ação) – doutrina elaborada por Gandhi que é a base de seu pacifismo. A resistência pacífica. Nada poderia ser mais adequado para um momento como aqueles que vivemos – só lembrando que o começo de 2021 foi um dos picos das mortes que aconteceram em decorrência do vírus.

Foi algo grandioso naquele momento ver, mesmo que ali pela tela do computador, o jovem Gandhi em seu começo de

carreira como advogado na África do Sul com toda a imponência da música de Philip Glass somada à montagem do espetáculo que conseguia efeitos mesmerizantes ao utilizar projeções sobre painéis formados por jornais manipulados pelos cantores.

O responsável pelo set da montagem é o designer britânico Julian Crouch. Foi ele quem projetou os grandes bonecos que acompanham os atos da ópera assim como o uso do jornal como elemento cênico. Inspirado pelo momento resolvi procurar alguma forma de contactar Crouch pela internet para entrevistá-lo sobre o jornal impresso como elemento de construção do set de Satyagraha. É algo para se ver com calma. Com tempo. Desdobrando ideia após ideia num continuum no qual o palco se estende até os domínios épicos de figuras míticas como Arjuna (figura fundamental do Bhagavad Gita). Tudo isso acontecendo a partir das dobras e desdobramentos do jornal como elemento constituinte da cena.

A movimentação dos figurantes é constante e assim a coreografia fluída se coloca como um elemento fundamental

na formação dos grandes painéis de jornal para projeção de textos que marcam a ação no palco. Com isso Crouch consegue vincular o jornal como elemento cênico associando-o como uma tela, um anteparo, um écran que com sua opacidade revela a luz das palavras e pensamentos projetados. A própria consciência que permeia toda a narrativa.

Ao ser perguntado sobre como ele via o jornal como elemento estético na construção da cenografia, Crouch explicou: “Brincamos por um tempo antes de Satyagraha com o uso de jornal como elemento de fantoche, geralmente em workshops e masterclasses. Isso não foi de forma alguma um exercício intelectual. Geralmente usávamos jornal porque era considerado descartável e (naqueles tempos pré-digitais) era considerado inútil depois de lido. Estávamos envolvidos em uma espécie de alquimia otimista, em que algo belo e valioso poderia ser criado a partir do lixo. Claro que o fato de os jornais estarem cheios de histórias, acrescentou inúmeros significados, mas principalmente foi esse elemento ‘sem valor’ que nos atraiu, combinado com as propriedades do próprio papel, e o som que ele faz. Depois de ser manipulado por um tempo, o jornal assume uma espécie de qualidade antiga que é muito sugestiva aos olhos”.

O tempo do espetáculo, o que em cinema se chama de diegesis (tempo representado, encenado) é totalmente descontínuo em relação às épocas e aos lugares. “Satayagraha é uma obra muito particular. Não é bem uma ópera, porque não tem uma narrativa reconhecível (mesmo os eventos da época de Ghandi na África não são apresentados em nenhuma ordem cronológica).

Não há diálogo propriamente dito no libreto - as palavras se relacionam apenas tematicamente com os acontecimentos. Todas as palavras são passagens em sânscrito do Bhagavad Gita”, explica Crouch.

É que uma tela sempre pode ser compreendida como pele e pele é uma interface – as páginas de um jornal hoje se inserem na lógica das interfaces digitais. Esta montagem de Satyagraha parece colocar essa ideia em cena. A ideia de uma superfície como tela, como tela opaca sobre a qual se projeta uma imagem e que a manifesta ao olhar.

Não há como não lembrar da pintura “Philip Glass” do londrinense Claudio Francisco da Costa. A imagem de um artifício (no caso uma prótese do olhar), os óculos do compositor americano devolvendo a potência do olhar a quem observa a tela. A música de Glass é uma música de vidências. Uma música sobre o devir – de como o diferença se afirma a partir da repetição.

A cenografia de Satyagraha compõe assim momentos de visualidade marcante. Tudo é feito de jornal. O chão, as figuras de papel machê. O papel dos envelopes e dos jornais emoldura todo o espetáculo. O mundo cênico em que Gandhi, Tolstoi e Martin Luther King se encontram é um mundo construído pela plasticidade do jornal em sua materialidade mais primária.

Como este mundo se relaciona com o mundo em que vivemos hoje? O que um mundo tem a dizer sobre o outro? Crouch observa: “Havia uma pista no ato no qual se representa o tempo de Gandhi na África. Ele fazia parte da publicação de um jornal, que se tornou nosso ‘in’ para o uso desse elemento cênico que são os jornais. Como Satyagraha foi uma ampla colaboração, eu sabia que seria acertado escolher um material geral. Isso permite que outros membros da equipe tenham um caminho fácil para colaborar. Assim, uma vez que o jornal é escolhido como material de base, ele se abre para a projeção e para todas as formas que pareçam razoáveis de como usá-lo. Assim, embora existam razões intelectuais pelas quais o jornal ressoa como um material de projeção, o processo na verdade funciona ao contrário. As decisões são emocionais e do "instinto", mas com o conhecimento de que cada decisão ressoa com significado. Eu geralmente trabalho dessa maneira, onde o significado é revelado através do processo, então você está essencialmente “encontrando” algo em vez de ter uma ideia clara e, em seguida, tentando encontrar a imagem que corresponda a ela. Baseia-se no subconsciente e não no consciente”.

A tênue membrana que separa o mundo no qual vivemos daquele outro que sonhamos com a mais plena de nossas potências, é essa delgada linha de dobra de um mundo no outro que faz com que todo e qualquer palco se torne um espaço simbólico, imaginário e que opera seus milagres enquanto, lá fora, o som e a fúria devoram as esperanças

frustradas porque mortais.

O mundo e o palco. Como interface no interstício entre ambos uma prosaica página de jornal como tela que revela e desdobra a luz das palavras. Ghandi, Tolstói e Luther King revivem assim suas grandezas de espírito e vida na ópera de Philip Glass. Uma página é sobretudo uma ponte. Sempre preste atenção na dobra da folha de jornal. Ela é um ponto de apoio sobre o qual se alavancam e deslocam mundos inteiros que explodem por dentro das palavras. A dobra é a essência do jornal. E de agora em diante todas as sextas-feiras a Folha de Londrina vem com sua Dobra, até mesmo e principalmente em sua edição digital.

* Silvio Demétrio é professor de Comunicação Social na UEL, com tese na ECA-USP sobre Jornalismo e Contracultura.

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