40 anos da morte de Truman Capote: a palavra a queima-roupa
Memória prodigiosa, talento e dilemas morais deram fama a um dos pais do New Journalism
PUBLICAÇÃO
quarta-feira, 28 de agosto de 2024
Memória prodigiosa, talento e dilemas morais deram fama a um dos pais do New Journalism
Silvio Demétrio/ Especial para a FOLHA
O último domingo (25) marcou os 40 anos da morte de um dos pais do New Journalism. Falecido em 25 de agosto de 1984, Truman Capote foi um dos escritores mais influentes do século XX. Amplamente lembrado por sua habilidade em misturar jornalismo e literatura, criando obras que transcenderam o tempo. Sua trajetória de vida, repleta de desafios, contradições e genialidade, reflete-se profundamente em sua produção literária e, mais especificamente, em sua obra jornalística.
Capote conseguiu transmutar as impurezas dos clichês do discurso jornalístico numa prosa envolvente, marcada pela complexidade emocional e pela precisão dos diálogos — um talento que ele atribuía à sua memória privilegiada.
Capote memorizava com precisão diálogos inteiros, um dom que o permitia registrar conversas e reproduzi-las com exatidão em suas obras. Sua cinebiografia, “Capote”, dirigida por Bennett Miller e estrelada por Seymour Hoffman em 2005, mostra de maneira tocante como o autor de “A Sangue Frio” valia-se desse seu dom. Essa habilidade foi fundamental para o desenvolvimento de seu estilo único, onde o jornalismo encontrou a literatura de forma inovadora.
Em "A Sangue Frio" – publicado em 1966 - Capote recria com precisão cirúrgica os diálogos e acontecimentos que levaram ao brutal assassinato da família Clutter em 1959 no povoado de Holocomb, zona rural do Condado de Finney, no Kansas. Ele passa meses entrevistando os envolvidos e observando o ambiente, mas, ao invés de gravar ou tomar notas detalhadas, Capote confiava na sua memória prodigiosa. Isso permitiu que
ele escrevesse a obra com uma fluidez e naturalidade que se assemelham à ficção, mas com o impacto e a veracidade dos fatos reais.
Quem se vale desse mesmo método no jornalismo brasileiro é o carioca Ruy Castro, que nas biografias que escreve entrevista várias vezes cada fonte até interiorizar em sua memória a fala dos entrevistados.
Essa abordagem gerou uma nova forma de se fazer jornalismo, a qual Capote chamou de "romance de não-ficção". Mais tarde, a partir da coletânea publicada por Tom Wolfe no começo dos anos 70, essa forma híbrida de experimentação literária com a reportagem vai ficar conhecida como New Journalism.
NOVO PADRÃO DE REPORTAGEM
Capote conseguiu mesclar sua observação meticulosa dos detalhes com uma narrativa literária envolvente, criando um novo padrão para a reportagem investigativa. "A Sangue Frio" é um marco não apenas por seu conteúdo, mas também pela maneira como foi escrito. Capote demonstrou que a realidade pode ser tão ou mais fascinante do que a ficção.
Apesar de sua brilhante carreira, a vida pessoal de Capote foi marcada por dilemas morais e éticos que refletiram em sua obra. Um dos maiores dilemas enfrentados por ele foi relacionado à publicação de "A Sangue Frio". Capote se envolveu com os assassinos da família Clutter no Kansas, Perry Smith e Richard Hickock, desenvolvendo uma relação que ultrapassava a simples curiosidade jornalística.
Ao longo da escrita do livro, ele se viu em um dilema: a conclusão da obra dependia da execução dos assassinos, algo que, paradoxalmente, ele ansiava para encerrar o projeto, mas que também gerava um enorme conflito interno. A espera pela execução, que permitiria ao livro ter um final, se misturava com a consciência de que sua obra estava intrinsecamente ligada à morte de dois homens.
Esse dilema moral é abordado em "Preces Atendidas", uma obra inacabada e extremamente controversa de Capote. Neste livro, ele expõe de forma quase autobiográfica o preço que pagou por sua obsessão em documentar a verdade. A obra reflete a desintegração de sua vida pessoal, uma vez que ele revela segredos íntimos e trai a confiança de pessoas próximas, ao retratar figuras da alta sociedade com quem convivia.
"Preces Atendidas" serve como um espelho de sua alma conflituosa, onde a busca incessante pela verdade literária acabou por corroer sua própria existência.
Capote vivia um constante dilema: entre a necessidade de criar e a responsabilidade moral que vinha com essa criação. Sua trajetória é marcada por essa tensão entre a arte e a ética, que eventualmente o levou a um isolamento social e à autodestruição. Seus últimos anos foram consumidos pela bebida e pelas drogas, um reflexo do peso que sua consciência carregava.
VIDA E OBRA
A vida e a obra de Truman Capote são indissociáveis. Seu trabalho jornalístico, que exigia uma proximidade íntima com a realidade, frequentemente se chocava com sua vida pessoal. Ele era um observador por excelência, mas também um participante nos dramas que narrava. Essa dualidade, entre o espectador e o ator, permeia toda a sua obra e lhe confere uma profundidade única.
Capote conseguiu imortalizar personagens e eventos reais, transformando-os em elementos de construção de um universo literário. No entanto, essa imortalização veio com um preço alto. Sua memória, ao mesmo tempo que lhe permitia capturar e reproduzir com perfeição os diálogos e as situações, também era uma maldição, pois ele nunca podia escapar das realidades que documentava. Esse paradoxo o consumiu lentamente, fazendo com que ele se tornasse uma figura trágica, tão complexa e fascinante quanto os personagens que criou.
Capote redefiniu os limites entre o jornalismo e a literatura, mas sua importância vai além das inovações estilísticas. Ele foi um homem que viveu no limiar entre a criação artística e o dilema moral, e que pagou o preço por essa escolha. Sua obra continua a inspirar e a desafiar, não apenas por sua qualidade literária, mas pela profundidade das questões éticas e humanas que levanta.