O escritor João Gilberto Noll morreu na última terça-feira sozinho, em seu apartamento em Porto Alegre. Morreu como viveu, até mesmo porque a solidão é um tema recorrente em sua obra.

Dele li alguns livros, o suficiente para compreender que estava diante de uma obra impactante, escrita de forma inusitada: lirismo, coreografias de palavras associadas a um sentido cáustico para descrever a vida. Nos seus livros amor é amor, sexo é sexo, da forma mais crua que é possível narrar o instinto essencial em tomadas cinematográficas que revelam o amor hetero ou homossexual. Amor entre moradores de rua, amor de aventureiros que se jogam na selva para encontrar alguma coisa que os faça sentirem-se vivos ou aplacar a dor, aquela velha dor da existência que alguém profundamente descreve como "angústia", "carência" ou "falta", a falta que a psicanálise aborda muitas vezes como condição que nos faz projetar no outro sentidos que nunca alcançamos. Algo assim como um buraco negro.

Ilustração: Marco Jacobsen sobre foto de João Gilberto Noll com a cronista
Ilustração: Marco Jacobsen sobre foto de João Gilberto Noll com a cronista



Acho admiráveis escritores que criam no fio da navalha, dando a impressão de se cortarem a cada parágrafo. Os cortes, suturas e cicatrizes de Noll estão entre os momentos mais importantes da literatura nacional.

Dele guardo um encontro no Festival Literário Londrix. Era 2008, ele era o principal convidado daquela edição. Fez palestra no antigo edifício Júlio Fuganti, plateia lotada às 15 horas de um sábado modorrento. Ele falou sobre sua literatura sem muito entusiasmo, mas sua fala foi marcada pelo conhecimento: conhecimento da vida, conhecimento da literatura, conhecimento dos eventos literários onde as perguntas se repetem e os autores se repetem porque é isso que o público espera deles, até mesmo porque já sabem as respostas para cada pergunta. De vez em quando, o inusitado rompe a fala. Atira-se no ar uma provocação que tem o efeito de sacudir os acordos de fala e escuta. Daquela vez, o que me sacudiu foi a leitura que Noll fez de sua obra. De repente, pôs-se a ler o trecho de um de seus livros cujo nome agora me escapa a memória. Mas o ritual era intenso, um ritual profundo do autor com sua obra. Ele leu com voz de personagem, uma voz fininha,cheia de entonações,um sotaque difuso, diria um sotaque da alma de alguém que vivia dentro dele. Um antigo personagem, velho conhecido de sua literatura em fúria porque Noll escrevia com fúria, centrado em seus personagens, obcecado por suas histórias, tomado pelos seus enredos. Literatura de entidades, rara, pungente, pulsante, definitiva.

Quando acabou, impressionada com aquela voz difusa que habitava o autor, fui para a fila de autógrafos, naquele dia comprei dois livros, um era "Acenos e Afagos", considerado pelos críticos seu livro mais incompreendido. Quando cheguei perto dele, não resisti a dizer que sua literatura me pegava pelo lirismo e pelos socos no estômago. Mistura que não me deixava largar seus livros. Ele respondeu: "Acho ótimo que isso aconteça." Econômico nas palavras, comedido como essas pessoas que não perdem a conexão consigo próprias mesmo no meio da multidão. Noll era um escritor e um ser humano intenso. Seus textos deixam essa impressão como um alarme que soa pela vida. Assim, deixo que seu texto fale de sua intensidade, como a mão que se coloca sobre o coração, sem que seja preciso explicar mais nada. Vá em paz, João, e não preciso dizer que está doendo.

"Quando a gente se encontrava você dizia: meu coração tá doendo, toca aqui! Eu tocava no coração com a mão espalmada sobre teu peito e sentia o coração responder: pulsava ali uma outra vida que não a minha, um outro ser vivo no mistério mas tão mineral que eu podia tocar, alisar na minha ternura, apertar com o ódio de quem possui o que não é seu e que no entanto se dá. Um coração apaixonado. O coração pulsava feito uma pomba na mão, batia contra o meu tato todo cheio da fantasia madura, prestes a ser mordida: eu mordia o seio que guardava o coração você me dizia vem e em cada convite mais uma curva do labirinto se desenhava: eu enfrentava mais uma curva e me perdia mais uma vez ao teu encontro. E cada encontro nos lembrava que o único roteiro é o corpo. O corpo."

(O Corpo em Fúria, João Gilberto Noll, editora Record, 2008)