Quando criança ele desenhava em qualquer espaço. Um toco de lápis e uma parede em branco serviam à criação de formas originais, nem sempre 'traduzíveis' como uma casa ou um barco. Eram rabiscos que comunicavam um mundo interno, expressões que surpreendiam pelas cores e o traço livre.

Aos quatro anos, num impulso criativo, 'decorava' o tampo da mesa e, para não levar bronca, escrevia bem-humorado: “Foi o Gustavo', remetendo ao irmão a responsabilidade que sabíamos ser dele. Claro que não caíamos no engôdo, mas a atribuição era engraçada e ele exercitava a perspicácia.

Um dia, a caixa de lápis e as folhas em branco não serviram ao impulso de desenhar uma coisa grande. Então meu batom transformou-se em giz de cera, as paredes do corredor resplandeceram em paisagens avermelhadas como se o sol tivesse nascido ali.

Passaram-se os anos e a dedicação artística só cresceu. Num aniversário, quando ele estava em outra cidade, me enviou por e-mail uma sereia caprichosamente desenhada, texturas delicadas formavam as escamas, o porte era esguio, a cauda curvada e, como também gosta de música, a figura marítima tocava um violão. Me emocionei com a surpresa e a beleza da composição.

Sucederam-se formas de todos os tipos e cores. Dentre os desenhos inesquecíveis constam figuras fantásticas, criadas numa grande tela que dei de presente para que conhecesse um novo suporte. A tela serviu a fortes contrastes de luz e sombra, num desenho em preto e branco que ele nunca terminou. Meus apelos para que o concluísse serviram para despertar um enorme senso crítico e um dia ele rasgou a tela. Internamente prometi que não daria mais palpites.

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. | Foto: Marco Jacobsen

Depois vieram desenhos mais elaborados, com inspiração surrealista, manifestação que eu estudava no período em que ele era um adolescente. Como eu tinha álbuns na internet com obras de Salvador Dalí, Max Svanberg, Max Ernest, Leonora Carrington e Remedios Varo, entre outros, fazia questão de mostrar e comentar aquele tipo de estética, o que serviu a ele como inspiração.

Um dos desenhos mais representativos desta fase foi de um laboratório com dois insetos pesquisando sobre a mesa. O olho enorme da abelha impressionava, como se tivesse incorporado a dimensão de um telescópio. Meu elogio serviu mais uma vez para despertar um grande senso crítico e ele parou de desenhar daquela forma. Passou a uma fase em que imitava os clássicos, quase obcecado em reproduzir desenhos de Da Vinci e outros mestres, embora sempre incentivássemos traços mais contemporâneos.

A paixão pelo desenho arrefeceu-se há uns dois anos, justamente quando passou a cursar Artes Visuais na faculdade, nunca entendi o movimento inverso à aptidão que o levou ao curso, mas acho que está revisando conceitos. Sei também que na literatura e na arte não se força a barra. Na adolescência eu escrevia poemas ingênuos, uma onda criativa que cessou na fase adulta e foi reativada na maturidade, quando nem esperava mais pela ebulição poética das palavras. Arte e a literatura moram dentro da gente, embora sejam inquilinas que vêm e vão em movimentos espontâneos.

Todas essas lembranças afloraram na última quinta-feira, quando vi no quarto do meu filho um tênis jogado num canto. Chamou-me a atenção um desenho no bico de borracha. Coisas simples: o emoji de um sorriso, uma estrela, um pouco de grama e a palavra “coelhos', que, desenhados, não caberiam na 'tela'. Neste recorte identifiquei meu filho Fernão por inteiro, com o mesmo humor de quando assinava o tampo da mesa afirmando: “Foi o Gustavo.” Mais que isso, identifiquei seu olhar sobre o mundo: uma paisagem nos pés e a arte sempre na cabeça.