João Batista, São João Evangelista, Dom João VI, Papa João XXIII, John Lennon, John Graz, suíço que foi expoente do modernismo brasileiro. O que não falta no mundo é João. Mas só o Brasil tem João Cabral de Melo Neto, um poeta maior. No seu centenário, comemorado este ano, lembramos que ele nasceu no Recife, cidade que, através dos séculos, deu ao País tanta criatividade e cultura que não seria exagero afirmar que Pernambuco é o pai da arte nacional.

A produção inicial de João Cabral tem viés surrealista, tão expressivo no nome do seu primeiro livro “Pedra do Sono” (1942), imagem que sugere uma experimentação poética.

Mais tarde, João Cabral se afastaria da poesia como produto de “inspiração”, como preconizavam poetas românticos, mergulhando numa construção que se consumaria num antilirismo ao encontro da vida.

“Morte e Vida Severina”, escrito entre 1954 e 1955, é um de seus poemas mais famosos. Nele, a dicotomia vida e morte se realiza através da trajetória de um retirante nordestino que parte do sertão para o litoral. Um poema dramático que tem como subtítulo “Auto de Natal de Pernambuco”, um auto que a exemplo de outros poemas nordestinos, retrata a realidade da fome. Os autos são textos de linguagem simples, sua origem é medieval, mas atravessam os séculos, chegando à ponta da língua dos trovadores do cordel que se encontram em cada esquina do Recife.

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. | Foto: Marco Jacobsen

A construção racional do poeta desaguou em 1966 no livro “A Educação Pela Pedra”, considerado um dos livros mais importantes da literatura brasileira. O poema homônimo trata do exercício da criação poética, passando pelos sons e pela dicção. Linguagem seca, objetiva, como a realidade de nascença, da cultura e vivência nordestinas de um dos nossos maiores poetas: “No Sertão a pedra não sabe lecionar,/ e se lecionasse, não ensinaria nada;/ lá não se aprende a pedra: lá a pedra,/ uma pedra de nascença, entranha a alma.”

No mesmo livro, num dos seus poemas mais conhecidos, “Tecendo a Manhã”, Cabral nos entrega sua potência imagética: “Um galo sozinho não tece uma manhã:/ ele precisará sempre de outros galos./ De um que apanhe esse grito que ele/ e o lance a outro;/de um outro galo/ que apanhe o grito que um galo antes/ e o lance a outro; e de outros galos/ que com muitos outros galos se cruzem/ os fios de sol de seus gritos de galo/ para que a manhã, desde uma teia tênue,/ se vá tecendo, entre todos os galos.”

No Recife há esculturas que integram o Circuito dos Poetas, pontos turísticos que marcam a capital. A estátua de João Cabral está lá, sentada num banco, vendo a cidade ensimesmado com o mesmo olhar que teve em vida. Dá vontade de sentar ao lado dele e perguntar: Como vai sua visão de longo alcance, de poeta que viu a dura realidade brasileira, fazendo dela um tecido que se estende por décadas, sem perder a forma de grande arquitetura?

O poeta talvez desse uma resposta evasiva, alegando a enxaqueca para a qual ele fez o poema “Monumento à Aspirina.” Talvez ainda atravessasse o continente para nos contar da obra que escreveu em Andaluzia, onde viveu durante sua carreira diplomática e teve seu primeiro contato com uma cultura estrangeira.

Mas o João poeta decerto não esqueceria suas raízes, aquelas que o fazem estar até hoje de olhos fixos no Recife, porto e cidade, onde na minha opinião, transitam os corpos e as almas que estão entre as mais fortes da cultura brasileira.

Recife me encanta pelos olhos de João Cabral de Melo Neto, que cantou a cidade e as águas do rio Capibaribe no poema “Cão Sem Plumas”: “Chuva azul,/ da fonte cor-de-rosa,/ da água do copo de água,/ da água de cântaro,dos peixes de água,/ da brisa na água.// Sabia dos caranguejos/ de lodo e ferrugem./ Sabia da lama como de uma mucosa./ Devia saber dos povos./ Sabia seguramente/ da mulher febril que habita as ostras.”