Um guru libertino
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sexta-feira, 20 de abril de 2018
"Uma pessoa feliz não precisa de religião, não precisa de nenhum templo. Para ela, todo o universo é um templo."
Nos anos 1980, frases como essa eram repetidas por pessoas que não só as liam, mas procuravam viver segundo os ensinamentos do Bhagwan Shree Rajneesh, ou simplesmente Rajneesh, o guru de olhos profundos que se tornou uma das celebridades mais conhecidas da contracultura. Um misto de atitudes libertárias, ensinamento filosófico, fé religiosa e fanatismo de seita se misturavam no movimento criado por ele primeiramente na Índia, nos anos 1960, e que depois espalhou-se por vários países, onde jovens entraram de cabeça numa espécie de transe cultural que tem seguidores ainda hoje.
O guru nasceu na Índia em 1931 e foi chamado de Rajneesh Chandra Mohan Jain, nome que mudaria mais tarde para Bhagwan Shree Rajneesh. Quase três décadas após sua morte, em 1990, a Netflix lança a série documental "Wild Wild Country", dirigida pelos irmãos Chapman e Maclain Way, que resgata a vida do guru pop, cujos ensinamentos combinavam com as expectativas de uma parte da sociedade empenhada em mudanças planetárias, a partir de uma revisão do seu modo de vida.
Na época, muitas de suas ideias pareciam interessantes e avançadas dentro do contexto em que se desenvolveram, quando milhares de pessoas acreditavam em transformações fundamentais. Mas o sonho de construir uma sociedade livre esbarrou em fatos contraditórios que borram toda a ética das relações.
Rajneesh teve carisma para criar um movimento sobre o qual eu tinha informações que nem arranhavam a dimensão do fanatismo, mostrado na série, que levou membros da seita a atitudes impensadas.
O movimento em torno do guru teve seu ápice nos EUA, em 1981, onde ele criou um ashram enorme, na verdade uma comuna agrícola projetada como uma cidade para receber 5 mil pessoas. Num passe de mágica, no meio de um dos estados norte-americanos mais conservadores, entre os habitantes de uma pequena cidade Rajneesh atraiu milhares de pessoas que chegaram numa revoada, vestidas de vermelho, cantando músicas indianas, dedicadas às práticas da "meditação dinâmica" e da "terapia de gargalhadas." Formou-se assim um grupo festivo, cuja extroversão se expressava no sexo livre, ponto alto dos ensinamentos do guru, cuja liberalidade moral não tardou a chocar a sociedade tradicional do Oregon e do país inteiro.
A turma procurou também se adaptar às leis do local em vez de enfrentá-las e participaram de conselhos da prefeitura sendo capazes, no entanto, de criar um laboratório de bactérias onde cultivaram a salmonella que foi distribuída em mais de uma dezena de buffets de restaurantes, causando uma intoxicação que chegou a impedir 750 pessoas de votar num dia de eleição. Essa ação foi considerada o "primeiro ataque químico" dos EUA, nos anos 80.
Depois de florescer com a prática agrícola e a criação de um mercado paralelo, a ostentação de Rajenessh - que chegou a ter 90 Rolls Royce - passou a suscitar críticas, até a comunidade passar a ser perseguida.
Sheela, secretária de Rajnessh e considerada seu braço direito, rompeu com o guru, após uma série de episódios que vão de conflitos de administração a ciúmes, e fugiu para a Alemanha. Aproveitando sua ausência, Rajeneesh, que se transformou também em alvo da justiça americana, inclusive por problemas com a imigração na verdade um álibi que também serviria para justificar sua expulsão do país - passou a acusar sistematicamente a ex-secretária, como quem empurra para um inimigo útil um pacote de culpas.
Sucederam-se ações espetaculares, como a tentativa de fuga de Rajneesh e alguns membros da seita em aviões fretados, interceptados pela polícia que apreendeu dinheiro vivo e joias, até finalmente ele ser solto sob fiança e voltar para a Índia, onde trocou o nome para Osho segundo as fontes, uma designação de mestre até morrer em 1990 tão amado quanto odiado. A história de Osho é uma demonstração do que pode a união coletiva em movimentos que prometem o Shangri-lá. Com um pé na sabedoria e outro na picaretagem - pela usura exagerada dos bens materiais e manipulação de pessoas - a história de Osho ainda guarda um enigma indecifrável: nunca saberemos se ele foi um anjo ou um demônio contracultural mas, sem dúvida, ele passou pela Terra tocando mentes libertinas e também conservadoras que nem se deram conta da mudança. O Oregon, mesmo sem Osho, nunca mais foi mesmo.