Sonhei com Antônio Carlos. Não um Antônio Carlos qualquer, com Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. Isso mesmo, o Tom Jobim. Ele também não é mais um brasileiro, é Brasileiro até no sobrenome, vai ver que por isso cantou pelo mundo o seu país.

No sonho eu estava na casa de Tom e via pelas janelas os recortes da paisagem do Rio de Janeiro, aquelas ondas de mar e montanhas, embora eu estivesse em ambientes sem muita claridade.

Devia ser fim da tarde quando a mulher de Tom começou a conversar comigo, a empatia foi espontânea. Não se tratava de Ana Beatriz Lontra, que foi a segunda mulher de Tom. Ela não era fotógrafa, mas artista plástica, porque nos sonhos tudo pode se transformar e acontecer. Ficamos naquela casa vendo suas obras e uma coleção de pedrinhas alinhadas como um jogo estendido na terra. Disse a ela que também coleciono pedras, então a simpatia passou a amizade.

A coleção de pedrinhas da mulher de Tom me remeteu ao livro “O Homem e Seus Símbolos”, de Carl Jung, inspirado num sonho do autor e que mostra, entre outras coisas, as coincidências culturais que acontecem mesmo entre povos distantes. Por exemplo, uma tribo africana guarda uma coleção de pedras organizadas do mesmo jeito que uma tribo australiana a milhares de quilômetros. Eu não sabia que essas conexões do inconsciente coletivo acontecem também em sonho, foi minha primeira experiência, mas isso é coisa para ser contada no divã, para nenhum psicanalista botar defeito.

Na casa de Tom o quintal era úmido e descobri que ali havia alguns mortos. Reflexo talvez do filme “A Vida Invisível” que assisti na véspera, pouco antes de dormir. O filme se passa no Rio e nele também são vistos túmulos. Mas os defuntos do Tom poderiam ser ele mesmo, morto e ressuscitado mil vezes, ali na minha frente, com o chapéu e tudo, enquanto eu procurava pela casa o seu piano.

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. | Foto: Marco Jacobsen

Mais para o fim do sonho ele tocou “Matita Perê”, nome da canção que cita um pássaro que é também uma lenda, dizem que à noite ele vira mulher. Matita perê é um pássaro das matas brasileiras, de beleza rara, cujo canto consiste em duas notas, o que talvez dê um samba ou uma bossa nova. O bom de sonhar é que a gente escuta de novo a boa música brasileira, aquela que sumiu das rádios.

O casal Jobim me ofereceu biscoitos, biscoitos finos, e me convidou para voltar à sua casa, onde sua mulher quer me mostrar mais obras de arte e suas coleções de pedras. Prometi que volto sim, à casa perto da Floresta da Tijuca ou ao Jardim Botânico, onde Tom Jobim foi velado. Não haveria homenagem maior ao compositor do que ser velado entre palmeiras e bromélias, assim foi. Me despedi dizendo que vou voltar outra vez, num próximo sonho.

Por ora, fico com os versos de Matita perê, uma descoberta. Ou seria uma revelação? Porque Matita perê, na tradição brasileira, é a voz do destino ou dos mistérios da mata. Ouçam aí e depois me digam o que acham:

No jardim das rosas de sonho e medo

Pelos canteiros de espinhos e flores

Lá, quero ver você

Olerê, Olará, você me pegar

Madrugada fria de estranho sonho acordou João

Cachorro latia, João abriu a porta

O sonho existia

Ouça aqui Matita Perê , com Tom Jobim