A série "Transatlântico", da Netflix, estreou na semana passada e já está no Top 10 da plataforma. Bem produzida, romântica, com um enredo político bem costurado e com locações e figurinos elegantes, a série chama a atenção do público. Mas o que mais importa é o enredo sobre a Resistência e os refugiados da Segunda Guerra.

A série baseia-se em fatos reais. Durante a Segunda Guerra foi criado na Europa um Comitê de Resgate Emergencial (ERC), grupo internacional que retirava dos países europeus judeus ameaçados pelo nazismo, dentre eles muitos artistas e intelectuais. A série resgata personagens reais como Varian Fry, Mary Jayne Gold, Albert Hirschmann e os outros membros do ERC, responsáveis pelo resgate de cerca de 2 mil pessoas, segundo a primeira temporada. Anna Winger, produtora e roteirista de "Transatlântico", inspirou-se em histórias contadas por seu pai e trouxe à cena figuras como Lisa Fittko (interpretada por Deleila Piasko), que criou uma rota de fuga na Espanha, ajudando centenas de refugiados que atravessaram os Pirineus.

Particularmente, o que chama minha atenção é o foco nos artistas surrealistas que compunham o grupo que precisava sair da Europa a todo custo. Precursores da arte moderna, a quem os nazistas chamavam de "degenerados"- num exemplo claro da incompreensão e ignorância sobre novas formas e conteúdos que despontavam no início do século 20 na poesia, pintura, cinema, teatro e outras linguagens - figuras como André Breton, poeta, escritor e um dos fundadores do movimento com seus Manifestos do Surrealismo, escritos em 1924 e 1930, são personagens da série. O surrealismo, na verdade, nunca foi encarado pelos seus criadores apenas como movimento estético, mas uma experiência que implicava em atitudes para um novo mundo, tendo a arte como expressão fundamental da transformação, numa conexão entre arte e vida.

Na série, o Comitê de Resgate Emergencial atua em Marselha, na França, onde os refugiados recebem ajuda e passaportes para sair da Europa. O grupo de artistas e revolucionários surge em reuniões e festas criativas onde circulam figuras importantes como Marc Chagall, Max Ernest, Duchamp e a filósofa Hanna Arendt. A série destaca personalidades menos conhecidas do grande público como o pintor romeno Victor Brauner que enveredou pelo abstracionismo, dadaísmo, expressionismo e surrealismo, todos movimentos de ponta dos incríveis "artistas degenerados", expressão cultivada até hoje pela extrema-direita que alimenta o ranço por tudo que é novo mesmo quando já é "velho", como evolução do processo artístico que extrapola o conceito clássico da "beleza", ultrapassado há mais de um século.

Victor Brauner tem um história pessoal que abarca o psiquismo que envolvia a criação surrealista, que nasce ao mesmo tempo que a psicanálise. Brauner pintava autorretratos com um dos olhos vazados e protagonizou o que muitos consideram uma "premonição artística" ao ser vítima de estilhaços de garrafa, numa briga de bar, que acabaram por deixá-lo realmente cego de um olho em 1938. Outra figura menos conhecida, mas essencial, é Hans Bellmer, que se ocupava da fragmentação do corpo num trabalho artístico com bonecas desmembradas e fotografadas, obra onde podem ser aplicadas as teorias de coisificação do corpo de Bill Brown e da fetichismo de Freud.

As teorias de Freud influenciaram obras surrealistas inspiradas nos sonhos, no inconsciente e no universo psíquico, então pouco conhecidos, que passariam a compor um novo arcabouço de conhecimento. Como pesquisadora desses fundamentos, desde a dissertação de mestrado sobre literatura e loucura, encontrei no surrealismo categorias que contemplam a obra dos insanos, dos presidiários e dos excluídos como arte, hoje aceita, mas que foi expurgada pelo cânone fascista que considerava esse tipo de criação uma "degeneração", conceito que, infelizmente, ainda é reproduzido por mentes excludentes e nada empáticas em pleno século 21.

Aguardo a nova temporada de "Transatlântico" com seus passageiros reais e surreais.

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A opinião da colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.

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