Imagem ilustrativa da imagem Sapatinhos de Natal
| Foto: Ilustração: Marco Jacobsen



Pela porta entreaberta no verão, percebo que meus vizinhos têm o hábito de tirar os sapatos para entrar em casa. O sapato masculino, o scarpin de verniz, o tênis do menino e as sandálias da menina em tamanho reduzido, como seus quatro anos, ficam sobre o tapete, no qual eles trocam tudo por chinelinhos e chinelões.
Admiro o hábito que tem origem oriental, aprendi com os japoneses que tirar os sapatos antes de entrar em casa previne para não levarmos para quartos e salas a sujeira que gruda nas solas pelas ruas.
Mas de uns tempos para cá, vi que na porta dos vizinhos estava faltando um par. O scarpin de verniz desapareceu, juntamente com eventuais sandálias femininas que ficavam ali. Reforço que vejo tudo pela porta que eles mantêm aberta, porque não costumo espiar casas alheias por ação voluntária, numa atitude típica dos curiosos.
O fato é que o scarpin desapareceu durante dias. E fiquei imaginando o que teria acontecido com a dona dos sapatos. Viajou? Foi descansar num spa? Foi visitar parentes? Tudo isso são hipóteses para o desaparecimento súbito de um sapato número 36, pelo que suponho.
Passados dias, o filho do casal, em idade escolar, passou a subir e descer o elevador sozinho, sem mãe, mas sempre com o cabelo penteado, banho tomado e o uniforme do colégio, numa reprodução dos mesmos hábitos.
Com o passar do tempo, aquele garoto por quem me afeiçoei por ter olhos escuros como os dos meus filhos, além de usar os óculos de um pequeno estrábico, passou a transparecer uma tristeza, que me passa a ideia de solidão contida a custo. Subindo e descendo com seu material escolar, sempre nos horários em que vou e volto do trabalho, encontrei meu personagem cada vez mais triste, mas nunca tive a coragem de perguntar porque nos seus olhos eu encontrava agora vestígios de saudade.
Com o tempo, os sapatos voltaram a ficar desalinhados no tapete, sem o cuidado feminino de arranjá-los com todos os bicos para a frente. O apartamento, sempre arrumado, passou a ter menos trato, com as cortinas fechadas. Então percebi, pelos detalhes, que a mãe não morava mais ali, mas não ouvi nenhuma queixa, sequer um choro, dos outros moradores. O pai continuava discreto, o garoto tímido, a menina não vi mais e supus que tinha ido com a mãe. Baixou tristeza naquele andar.
Até que outro dia, subitamente, vi que havia mais luz na sala de porta entreaberta e o vaso de plantas tinha voltado para o corredor, no lado externo da porta. Não foi difícil perceber que o cuidado havia voltado àquela moradia, que tinha ficado mais triste sem a presença da mãe.
O novo movimento não durou muito tempo. Em poucos dias os sapatos voltaram a ficar desalinhados, a planta do corredor necessitada de água e a luz da sala cedeu à mesma penumbra dos tempos vazios. A mãe havia saído de novo.
O menino de olhos escuros passou a circular envolto numa espécie de bolha de solidão, sempre comportado, circunspecto como quem carrega uma dor íntima, apesar do patinete e da bola que leva quando desce para encontrar os amigos.
Na última quinta-feira, o clima mudou. Com a chuva fina da manhã vi que sapatos femininos encharcados estavam de novo sobre o tapetinho. O scarpin voltou à casa, e um enfeite colocado na porta indicou que havia chegado o Natal. Nos últimos dias, passei a torcer pela família reunida e vi um garoto de nove anos mais feliz subir e descer o elevador com ares de festa. Lembrei-me da lenda sobre Papai Noel deixar presentes nos sapatinhos e desejei intimamente que todos os calçados daquela casa estejam de novo juntos, enquanto os chinelos são usados na sala limpa e perfumada. O melhor presente que uma vizinha pode receber é o sorriso de um garoto pendurando luzes coloridas na companhia do pai e da mãe. Feliz Natal! E que as casas e edifícios reúnam as pessoas e seus sapatinhos.