Que venham mais Nièdes e menos coronéis
A arqueóloga Niède Guidon, que faleceu esta semana, colocou o Brasil no centro das discussões científicas no mundo
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sábado, 07 de junho de 2025
A arqueóloga Niède Guidon, que faleceu esta semana, colocou o Brasil no centro das discussões científicas no mundo
Célia Musilli

O Brasil tem perdido grandes nomes das artes, da ciência e da cultura. Na última quarta-feira (4) morreu a arqueóloga Niède Guidon, aos 92 anos, pesquisadora que mudou paradigmas ao demonstrar que o surgimento do homem nas Américas tinha ocorrido há 50 mil anos, muito antes do que era considerado nos anos 1980, quando ela desafiou a chamada Teoria de Clóvis. A descoberta pôs em cheque o que cientistas europeus e norte-americanos pressupunham. Suas pesquisas causaram polêmicas, colocando o Brasil no centro das discussões científicas no mundo.
A arqueóloga que se tornou referência internacional nasceu em Jaú, interior de São Paulo, estudou na USP, fez doutorado na França e foi de lá que trouxe uma equipe de arqueólogos para fazer pesquisas no sertão do Piauí, na Serra da Capivara, hoje um Parque Nacional também idealizado e protegido por ela até a sua morte.
No local, há inscrições rupestres que estão entre as mais importantes do mundo, paredes forradas de arte e informação sobre o passado remoto marcando a passagem da humanidade por séculos nos quais não se supunha sua presença nas Américas.
Niède, além de marcar a história com suas descobertas, realizou um trabalho social com as comunidades locais levando a população a valorizar sua cultura e gerar renda. São Raimundo Nonato (PI) tornou-se referência no Brasil e no mundo, com o trabalho da cientista influenciando positivamente os estudantes e moradores da região onde ela liderou pesquisas e projetos de preservação aos quais dedicou a vida.
O olhar da pesquisadora incluiu a transformação social de forma que ela se converteu num nome que levou novos desafios e conquistas à região. Mas nem tudo foi fácil. Niède foi presa durante o período da ditadura militar no Brasil, além de provocar a ira dos políticos e coronéis da região com seus projetos de vanguarda dedicados aos sítios arqueológicos e ao meio ambiente.
Numa entrevista a Pedro Bial, ela conta que um desses coronéis a ameaçou de morte. Ela resolveu enfrentar o homem, cara a cara, e lhe disse: " Então me mate, mas já avisei a alguns amigos do Rio de Janeiro que, se acontecer alguma coisa comigo, eles venham e matem o senhor e sua família inteira." Com o blefe, segundo ela, a história acabou por aí e o homem deixou de persegui-la
Essa era a lei do sertão no tempo em que uma cientista, mulher e determinada, realizou pesquisas numa das regiões mais inóspitas do Brasil, cravando o nome do país na ciência mundial.
Que venham mais Nièdes e menos coronéis.

