Para que 18 tiros se só um tiro mata?
Ao ouvir a mãe do jovem morto, fui tocada pela declaração de que "ele fazia Ensino Médio", como quem mostra a medalha de um filho assassinado
PUBLICAÇÃO
sábado, 22 de fevereiro de 2025
Ao ouvir a mãe do jovem morto, fui tocada pela declaração de que "ele fazia Ensino Médio", como quem mostra a medalha de um filho assassinado
Celia Musilli

A crônica "Mineirinho", escrita por Clarice Lispector em 1962, é uma resposta à morte de um homem chamado José Miranda Rosa, assassinado pela polícia do Rio de Janeiro porque era considerado um bandido. O texto exprime as polaridades entre o Eu e o Outro, pergunta até onde podemos compreender a dor do outro, as razões do outro, colocando-se no seu lugar quando podemos nos colocar, confortavelmente, apenas no nosso.
"..há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro."
Lembrei-me da crônica ao ouvir a mãe de Kelvin dos Santos, 16 anos, morto pela PM em Londrina, no último sábado (15). Ele não foi o único morto, outro jovem chamado Wender Costa, de 20 anos, também se foi a tiros.
Segundo o MP, foram disparados 18 tiros contra os rapazes.
Ao ver a mãe do adolescente num protesto que se seguiu ao acontecimento, tirando a força do coração dilacerado para afirmar que - ao contrário de Mineirinho - seu filho não era um bandido, fui tocada pela declaração de que "ele trabalhava num lava-rápido e fazia Ensino Médio", como quem mostra a medalha de honra de um filho assassinado.
E fiz a pergunta: "E se fosse meu filho?" Ou : "E se fosse seu filho?" - caro cidadão comum que economiza empatia.
Dona Cilene Vieira, de chinelo de dedo no protesto que se seguiu às mortes, com a voz rouca tentando a justiça quando já era tarde, pergunta: "por que tantos tiros eles levaram? Tiro de fuzil, pra que tantos tiros se só um tiro na cabeça mata?"
Sua pergunta vai ao encontro da crônica de Clarice: "...se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta (...) no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus."
A justiça deve ser feita. Mas, como diz um amigo, o professor universitário e escritor Renato Forin Jr, não será com uma escalada de violência que soa como "bombas semióticas, com celebrações festivas de marchas militares, o desfile de tanques, as autoridades olhando para questões complexas com as fórmulas mágicas da força" que a violência será reduzida tanto na mão de quem aperta o gatilho quanto na testa de quem recebe o tiro.
Façamos uma ressalva: a população precisa de Segurança, mas não à base de insegurança.
Vamos aos números, mais frios que os gritos: "Entre 2021 e 2023, o Brasil registrou morte violenta intencional de pelo menos 15.101 crianças e adolescentes. Jovens negros do sexo masculino perfazem a maior quantidade das vítimas. A faixa entre os 15 e 19 anos é a mais vitimada", segundo a Agência do Senado.
Que os números cedam lugar a um sentimento comum de justiça e que a sociedade questione: "Pra que tanto tiro? Para que 18 tiros se um só tiro mata?"
Há quem invoque a "bandidagem", em muitos casos inexistente, mas há sempre a "invocação" enquanto alguém muito próximo não entrar para as estatísticas do luto. E isso não é simplesmente triste, é extremamente trágico.

