20 de março, começa o outono que dá nome à minha peça preferida de Vivaldi em sua pungente "As Quatro Estações." O Outono de Vivaldi me encanta pelos violinos nervosos acompanhando a queda das folhas ao vento. Aqui, no hemisfério sul, a estação me encanta pelo céu de azul intenso. De dia, translúcido, sem nuvens. De noite, com as estrelas a se perder de vista.

Neste outono, faz um ano que estou em isolamento, em home office, com poucas saídas para o essencial. Mas não deixo de me lembrar que as estações mudam e que as folhas caem, formando um tapete gasto pelas ruas. Outono é a estação do ocaso que também antecipa o renascimento, significa cair para se levantar.

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. | Foto: Marco Jacobsen

Ainda virá o inverno, também na pandemia, para quem sabe depois, na primavera, a vida florescer como as atividades das quais só sentimos falta quando estamos privados delas. Outono seria a época de ir mais ao cinema para assistir aos filmes que concorriam ao Oscar em fevereiro, agora limitados às telinhas das plataformas de streaming. Também encolheram as visitas, os almoços em grupo, os passeios a pé, a vida agora tem máscaras no rosto e ai daquele que duvidar desta extrema necessidade. Há um vírus invisível que gargalha do negacionismo, aplaude o descuido, sabota quem se joga no comércio das vielas e dos shoppings.

Há um vírus que desconhece verão e primavera, acostumou-se a todas as estações e quem dera um solo de Hilary Hanh , a diva americana do violino contemporâneo, pudesse espantar a doença que contamina o ar que respiramos, compondo o Outono sem pandemia.

A música desapareceu das praças, só restam nossos apartamentos para, eventualmente, ver músicos nas sacadas ou ouvi-los nas salas vazias, com aplausos imaginários. Perdemos a convivência com os cinemas e os palcos, ganhamos tempo a mais para refletir, à flor da pele, o quanto os passeios simples e a vida cotidiana têm um valor que só se mede na falta.

Chega mais um outono, marcando um ano de pandemia. O tempo que é sábio - regido por horas, dias e estações - também haverá de marcar o fim da angústia de viver pela metade. Na primavera vamos renascer como as flores que magicamente explodem, atravessando bulbos como esses onde enfiamos, sem querer, nossas vidas nas últimas estações.