Londrina nunca se esquecerá de um dia de outubro de 2017 quando, durante o Festival de Dança, um artista que fazia uma performance no Lago Igapó, dentro de uma bolha de plástico, nu, silencioso, coberto de gel, foi ameaçado de prisão – por denúncia de alguns que, dizem, passavam pelo local. Ao mesmo tempo, o artista foi defendido pelo público que assistia ao espetáculo, de modo que a prisão não se consumou.

Há duas maneiras de ver este fato em Londrina: pela ótica dos censores, que tentaram moldar a moral da cidade inteira, segundo seu olhar, e a da plateia que assistia à performance que já havia sido apresentada em cidades do Brasil e do mundo, e sabia do que se tratava. O público recebeu da organização do festival a informação de que havia nudez na performance com classificação etária de 16 anos, além disso, acredito que a maioria dessas pessoas não estava ali para ver o artista nu, mas simplesmente ver o artista.

Na semana passada, a 4ª Turma Recursal de Juizados Especiais do Tribunal de Justiça do Paraná, decidiu aceitar um pedido de habeas corpus que solicitava o trancamento de uma ação penal contra o performer Maikon Kempinski que havia sido autuado por ato obsceno e depois processado por espetáculo obsceno por obra de uma parcela da sociedade de Londrina - cidade dos festivais – que em seu processo histórico de envolvimento com a cultura deveria saber que o nu na arte é tão velho quanto os vinhos na adega.

A decisão do Tribunal de Justiça do Paraná anula o processo e os paranaenses que gostam de arte, e sabem que nem tudo é obscurantismo em nosso estado, podem respirar mais aliviados. Li que o relator do caso , Aldemar Sternadt, considerou a situação vivida em Londrina como “absurda e desarrazoada.” Mais: foi “inaceitável, pois, imaginar que meia dúzia de incomodados ou sensíveis com a nudez do artista, atrapalhassem a apresentação artística. A arrogância e a ignorância saltam aos olhos. São pessoas que se arvoram tutores de uma população inteira.”

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. | Foto: Marco Jacobsen

Eu aplaudiria o relator no momento em que ele deu seu parecer, aplaudiria como o público que viu Maikon K atuando em “DNA de DAN”, nome do espetáculo que tanto causou em Londrina como se os censores de plantão desconhecessem que a nudez está no teatro, no cinema, na dança e nas artes plásticas, sem que isso represente “obscenidade.”

Sempre me intrigou o que viram de obsceno na performance no Lago Igapó. Um artista nu, mantido a 15 metros do público, coberto de gel, dentro de uma bolha transparente, através da qual só se vislumbrava a nudez como no box do chuveiro, nada tinha de obsceno. Ali, o corpo não estava na condição do erotismo que tanto assombra quem tem medo do nu.

O nu ali estava na representação de uma dança ritualística e o público só adentrava o espaço cênico, se quisesse, nos últimos momentos do espetáculo. Tudo condicionado à vontade de cada um, mesmo porque todos sabem que existe um corpo nu embaixo das roupas e que todo corpo tem um pênis ou uma vagina que não precisam ser ponto de fixação ou obsessão numa obra cercada por um contexto artístico que passa infinitas mensagens, além do nu.

Fico pensando o que fariam os moralistas se estivessem no Masp - Museu de Arte de São Paulo - com seus filhos, e se deparassem com a esplendorosa nudez da tela “Angélica Acorrentada” (1859) – de Jean- Auguste Dominique Ingres. Tapariam os olhos das crianças ou chamariam a polícia?

Fico pensando no que faziam os moralistas quando uma pessoa na televisão – fato corriqueiro na sala de qualquer família brasileira - se enfiava numa banheira cheia de gel, mostrando as nádegas com muito mais erotismo do que Maikon K em sua bolha de plástico. Aproveitaram para ver junto ou chamaram a PM para fechar o canal?

Interessante que a nudez mais tosca, num quadro na TV, não ofende. O que ofende é o nu inteligente, necessário na construção de uma obra. O nu incompreensível para quem não conhece ou detesta a arte é o que tem sido objeto constante de censura. Na verdade, a maioria dos censores de ocasião está sempre de olho na nudez que serve à construção de sua própria popularidade. E para isso até chamam a PM, porque quanto mais público for o “escândalo" mais seu ato de censura ganhará visibilidade. Esse oportunismo é a constatação mais lamentável do que aconteceu em Londrina em 2017.