Nasci quase junto com a bossa nova. Mas peguei carona mais tarde e achava lindo o movimento lúdico que tinha músicas com letras tão singelas: "O barquinho vai/ a tardinha cai"

Minha paixão pela bossa nova, além das músicas excelentes, era pela postura dos artistas. Num Brasil que saia da influência hollywoodiana dos anos 1940, com artistas glamorosos como Carmen Miranda - com suas bananas - ou vozes dramáticas como a da grande Dalva de Oliveira - que minha mãe adorava - ouvir Nara Leão com aquela voz quase sumida, mas afinadíssima, cantando com seu banquinho e violão as obras-primas de João Donato, Carlinhos Lyra ou João Gilberto, muitas nascidas no próprio apartamento de seus pais em Copacabana, dava uma sensação de completude pela interpretação sutil, num estilo elegante que substituia o drama pela ternura.

Mas Nara não era só a musa da bossa nova, passou a ser uma das artistas mais engajadas da música popular brasileira quando fez o show "Opinião", emblemático na ditadura militar quando a cantora desceu o samba do morro para os palcos do Rio de Janeiro, através da parceria com Zé Keti, e trouxe a força nordestina de João do Vale que também estava com ela no show cênico, sob a influência de Augusto Boal, Vianinha e outros craques do teatro.

Não demorou para que a ditadura militar mirasse a moça e a cantora aparentemente frágil, que tinha a força de uma leoa, passou a receber ameaças de prisão depois de criticar o exército numa entrevista. Pior que isso, conta Cacá Diegues, casado na época com Nara, eram as ameaças de estupro e barbáries sexuais. Que isso fique registrado para quem ainda hoje acha a ditadura "uma beleza".

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. | Foto: Marco Jacobsen

Quando ameaçada de prisão, Nara recebeu apoio de Carlos Drummond de Andrade, que fez para ela um poema chamado "Apelo". O poema está em livros, mas também na minissérie "O Canto Livre de Nara Leão", exibida pela Globoplay, lido na voz competente de Maria Bethânia. Nos 35 anos da morte de Carlos Drummond de Andrade, completados no dia 17 de agosto, reli o poema duas vezes, na minissérie mesmo, voltando o vídeo para ver o manuscrito do poeta. E para não esquecer nunca mais!

Segue um trecho do poema, o que vale para ontem vale para hoje. Viva Drummond e viva Nara Leão!

APELO

Meu honrado marechal

Dirigente da nação

Venho fazer-lhe um apelo

Não prenda Nara Leão

*

Soube que a Guerra, por conta,

Lhe quer dar uma lição. Vai enquadrá-la

– esta é forte –

Artigo tal... não sei não

*

A menina disse coisas

De causar estremeção?

Pois a voz de uma garota

Abala a revolução?

*

Será que ela tem na fala,

Mais do que charme, canhão?

Ou pensam que, pelo nome,

Em vez de Nara, é leão?

*

Se o general Costa e Silva,

Já nosso meio-chefão

Tem pinta de boa praça,

Por que tal irritação?

*

Ah, marechal, compre um disco

De Nara, tão doce, tão

Meigamente brasileira,

E remeta ao escalão;

*

Ao ouvir o que ela canta

E penetra o coração,

O que é música de embalo

Em meio a tanta aflição.

*

Nara é pássaro, sabia?

E nem adianta prisão

Para a voz que pelos ares,

Espalha sua canção.

*

Meu ilustre general,

Dirigente da nação,

Não deixe, nem de brinquedo,

Que prendam Nara Leão.

...

A opinião da colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.

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