Quando se fala no surrealismo, autores e artistas do sexo masculino são lembrados, a começar por André Breton, passando por Paul Éluard, Louis Aragon ou os brasileiros Murilo Mendes, Jorge de Lima e Roberto Piva. Nas artes plásticas, Salvador Dalí , René Magritte, Paul Devaux ou Max Ernst vêm à memória.

As mulheres surrealistas quase nunca são lembradas ou sequer conhecidas. Há quem cite Frida Kahlo, embora a pintora mexicana tenha negado pertencer ao movimento, colocando sua pintura mais como expressão de sua vida e dor, a partir de vários autorretratos. Apesar disso, por ter ficado conhecida internacionalmente pelo apoio que recebeu de Breton, que a levou a expor num salão de artes em Paris, Frida é inserida entre os surreais.

Quando se trata de surrealismo também é complicado falar em "movimento", tal como concebemos os movimentos artísticos. O próprio Breton não considerava a manifestação um movimento, o que talvez possamos chamar de processo, no qual vida e arte se encontram.

Nas origens desse processo existem mulheres nem sempre lembradas ou sequer conhecidas ou reconhecidas como um Dalí. A inglesa Leonora Carrington e a espanhola Remedios Varo estão na linha de frente desses expoentes femininos que levaram a arte à quebra dos parâmetros dos padrões do "belo", dando um passo além para a própria modernidade, embaladas por um princípio de "encantamento" ou "maravilhamento", como preconizam as origens da arte surreal que nos captura pelo impacto e a estranheza de formas e conteúdos que fogem ao comum.

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. | Foto: Marco Jacobsen

Leonora Carrington radicou-se no México a partir de 1941, saindo da Europa em meio aos graves conflitos da Segunda Guerra Mundial que levaram muitos artistas a se exilarem. No México, Leonora criou uma arte grandiosa como pintora , escultora e ilustradora., abarcando mundos abstratos, universos oníricos, imagens do inconsciente tão caros ao surrealismo, contemporâneo ao surgimento da psicanálise. Essa temática dos sonhos e imagens profundas da mente humana são a matéria-prima da obra de Carrington e outros surrealistas.

No México, Carrington também se reencontrou com Remedios Varo, pintora espanhola a quem ela havia conhecido alguns anos antes em Paris. A arte dessas mulheres faz parte da essência de um processo artístico ainda hoje pouco compreendido, embora reconhecido, muito valorizado, e citado indevidamente no uso comum da palavra "surreal."

Esta semana, ao postar uma tela de Remedios Varo numa rede social - Disturbing Presence (1959) - notei o grande impacto da obra sobre as pessoas. A maioria não conhecia a pintora. Mas quase todos foram capturados pelo que sua obra instiga, despertando a dúvida e o maravilhamento. O que me impressiona, tanto na obra de Leonora Carrington quanto na de Remedios Varo, é a alta voltagem artística e o número enorme de obras. Quando vi suas telas numa exposição no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, em 2015, fiquei impressionada com a qualidade, o número de quadros expostos, e aquilo era só uma pequena fração de seus trabalhos. Na exposição também havia obras de Frida.

O surrealismo impacta pelo encantamento ou, em linguagem mais apropriada ao tema, pelo "maravilhamento". Por isso, sinto arrepios quando ouço alguém nominar um ato ou fala absurda de um representante político, por exemplo, como "surreal". Como ensina o mestre Claudio Willer, uma das grandes autoridades sobre o assunto no País, a expressão surreal está sendo usada de forma totalmente alheia ao seu contexto. Pelo uso comum é utilizada quando nos deparamos com uma situação vergonhosa ou absurda e aí dizemos: "é surreal". Mas não, o que hoje nos causa indignação na esfera política não é surreal, é simplesmente grotesco. É preciso dar o nome certo às coisas.