Esta semana, ao ver a situação gravíssima da Itália com a epidemia de coronavírus não pude deixar de associá-la ao filme “Morte em Veneza”, de Luchino Visconti, adaptado de um livro de Thomas Mann. A associação é porque “Morte em Veneza” traz uma epidemia de cólera, dissimulada pelas autoridades, que acaba por contaminar o personagem mais velho, um músico que apaixona-se por um adolescente polaco de beleza estonteante e acaba morrendo, sem nunca ter trocado uma palavra com seu amor platônico.

Hoje, na Itália, a epidemia tem dimensões gravíssimas, na falta de atendimento médico para todos cogita-se até que os mais velhos serão sacrificados. Há depoimentos de pessoas que vivem lá afirmando que isso é mesmo uma realidade, tendo em vista a necessidade de salvar "quem tem mais chances", no caso, os jovens. Acho a solução muito triste e lembro-me da epidemia do filme, negada até se tornar insustentável. Até parte do enredo, as pessoas nos balneários são enganadas sobre o mal estar que é atribuído ao vento que costuma soprar no verão, a partir do deserto do Saara - o scirocco - quando, na verdade, o mal estar é o prenúncio da doença e da morte.

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. | Foto: Marco Jacobsen

O mundo vive dias tristes por causa do coronavírus, isso nos leva a uma reflexão: bastou um vírus para colocar a arrogância de governos, nações e mercados no seu devido lugar. Países asiáticos, europeus e agora as Américas, tudo desmoronando e certos líderes - incluindo o governo brasileiro - tentando minimizar a pandemia que não deixa de ser uma lição amarga sobre a inutilidade das fronteiras. A doença pôs todo mundo no cantinho para pensar. A morte em massa cria uma atmosfera tristíssima e desafiadora sobre nosso lugar no mundo. A morte nos iguala, coisa que a vida, infelizmente, nem sempre consegue.

Há ainda os que parecem viver em outro planeta. Na iminência da doença, que já chegou ao Brasil, continuam achando que tudo não passa de uma “fantasia”, de um “espetáculo” midiático ou de uma situação criada por algum governo interessado em derrubar outros governos e outros mercados. Nas redes sociais, cada um lança mão de seu repertório para justificar o corona, ora tendendo ao pânico, ora tendendo a um relax forçado ou à incredulidade que é tão nefasta quanto o medo.

Vivemos um momento em que muitos ainda discutem as questões políticas ou econômicas sobrepondo-as às científicas. Ocorre que a contaminação é real e não circunscrita a esse ou aquele país. Não há mercado "seguro" para ninguém, nem populações seguras. Todos foram contaminados, a Europa vive hoje o que a China viveu ontem e as Américas também caminham para a contaminação em massa. A fragilidade humana diante de um vírus põe todas nossas ilusões políticas no chão. O que o mundo está vivendo vai além da discussão sobre a mentira ou a verdade da contaminação por coronavírus, discutir ainda sob esse prisma não tem nenhuma utilidade e apenas atrasa medidas que precisam ser tomadas.

Esta semana, amigos que moram na Itália fizeram relatos sobre a situação caótica que a população está vivendo, privada dos contatos cotidianos como o café no bar, a visita a um parente, um passeio ao ar livre. Um deles desabafa sobre a minimização do problema por quem não o vive: "Não se trata de 'uma simples gripe', como dizem alguns, mas de uma gripe de fácil contágio, que evolui para pneumonia grave e daí para infecção generalizada."

Prefiro não perder tempo com ilações sobre o fato de algum governo ter “plantado” o vírus para tirar vantagens. Isso chega a soar irresponsável. O coronavírus está aí e mata, sim. Tudo isso mostra nossa fragilidade enquanto espécie e inibe a supremacia dos chineses, europeus ou americanos. Essa lição de igualdade dolorosa, que poderia chegar pela vida, infelizmente nos chega pela morte.