Na última terça-feira (4), o apartamento do dramaturgo José Celso Martinez Corrêa pegou fogo. Logo ali no Paraíso, na zona sul de São Paulo, onde nunca imaginei que alguma coisa pudesse ser consumida pelas chamas. Engano. As chamas não escolhem bairro, ainda que alguns nos recolham simbolicamente a um estado celestial, no qual os santos trancam as portas, guardiões protegem as janelas, e as igrejas - que vamos contando pelas ruas na saída do metrô - transmitam a fé ortodoxa, católica ou do candomblé, que Zé Celso saudava com giras e tambores também no teatro.

Ainda em junho, quando Zé Celso se casou com o ator Marcelo Drummond, de quem foi parceiro por 40 anos, nenhuma tragédia pairava sobre o dono de um templo erigido como teatro, o Teatro Oficina. Aos 86 anos, o dramaturgo e diretor de espetáculos que trespassam a cultura brasileira com a dimensão de um acontecimento antropológico, o homem que reinaugurou tantas vezes o Brasil em cena, cravando na passarela do Oficina um rito de demandas e desmandos onde se lia a "veia láctea" do país pulsando, respirava a atmosfera de uma criação, na manhã em que seu quarto pegou fogo, depois de passar a noite lendo o livro "A Queda do Céu", de Davi Kopenawa, a ser adaptado para mais um espetáculo. Triste coincidência, Zé Celso quedou ali mesmo, no quarto, e faleceu nesta quinta-feira (6).

Zé Celso sempre foi artista das origens brasileiras, seus espetáculos tramam pactos com indígenas e africanos, com personagens populares que reacendem as lutas do país quando são revisitados. O Zé que levou "Os Sertões", de Euclides da Cunha, à cena teatral, impactava a cultura brasileira com mais cultura brasileira - comendo, mastigando e deglutindo o país antropofagicamente - e sempre o imaginei ungido por uma espécie de proteção que recende a florestas.

Por isso, assustei quando li a notícia de que sua casa havia pegado fogo, suspeitei que os guardiões tivessem cochilado naquela manhã quando, ao que consta, uma pane no aquecedor deu início às chamas que consumiram livros, roupas, documentos e o corpo do dramaturgo, causando queimaduras de segundo grau, o que foi grave demais para um homem de 86 anos.

No fim da tarde de terça-feira, sua sobrinha Beatriz Corrêa informava à imprensa que os pulmões de Zé Celso já tinham se normalizado e imaginei que salvo do monóxido de carbono, ele cumpriria, mais uma vez, o destino da Fênix ressurgida do fogo e das cinzas, ressurgida dos embates históricos jogados na cara da elite brasileira, em espetáculos como "Os Sertões" no qual Antônio Conselheiro reaparece na pele do MST, no corpo de um Zé ator e dramaturgo, coberto de lona preta, como vi no Teatro Oficina em 2003.

Mas, desta vez, não deu!

A torcida foi grande pela recuperação da força nacional encarnada no Zé. Meu apelo era para que os anjos do Paraíso, os santos bizantinos das igrejas ortodoxas e os orixás africanos salvassem a sua pele. Mas ele se foi como uma entidade teatral, um ícone que não devia ter morrido justamente quando o País reconstrói seu tecido social tão esgarçado. Os deuses deveriam ter lhe proporcionado mais anos de vida e embates, delírio e transe, bate-bocas com os donos do baú nacional, contra a pilantragem de Silvio Santos.

Mas, desta vez, não deu!

Penso que árvores devam ser plantadas naquele terreno ao lado do Teatro Oficina, sacramentado pela força de uma cultura que não se deixa enganar, naquele solo sagrado como chão pisado pelo homem do teatro em sua teimosia, em sua alegria, em sua utopia, genuinamente brasileiras.

Por tudo isso, mil vezes obrigada, Zé!

O Brasil não perde apenas um gigante, um dramaturgo, um diretor de espetáculos, perde uma entidade do teatro, mas sua revolução fica!

Assista a entrevista com Zé Celso no programa Persona:

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