As lembranças que tenho de meu pai são antigas, porque ele era um homem de antigamente. Nasci temporã quando ele já tinha 46 anos e minha mãe 36. Lá em casa, as crianças não nasciam a granel. Era preciso que um filho já estivesse grandinho para que viesse outro.

Meu pai era adepto do planejamento familiar num tempo em que os homens, sem pensar, faziam um filho atrás do outro com suas mulheres. A sensatez acompanhada por minha mãe nas "tabelinhas" era um contraceptivo seguro, de modo que crescemos numa família de três irmãos, com nascimentos espaçados. Essa foi apenas uma de suas "modernidades", mas há outras pistas de que era um homem de um novo tempo.

Seu olhar ia além da pequena cidade onde todos nascemos no Norte do Paraná. Cornélio Procópio era tímida nos anos 1960, mas meu pai ia além, nos contando sobre países e capitais que nunca conhecemos ou, mais ainda, falando de planetas e sistemas cósmicos porque gostava de astronomia.

Sem lunetas ou telescópios, ele me ensinou sobre constelações, com nomes científicos ou populares como as Três Marias, o Cruzeiro do Sul ou Órion, explicando as configurações de cada uma.

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. | Foto: Marco Jacobsen

Relojoeiro, era um homem do tempo e tinha habilidade especial com máquinas, nos explicando sobre o eixo, o "cabelo do relógio" ou a quantidade de rubis contida em cada um daqueles mecanismos. Num momento em que sua velha profissão está quase extinta, sendo procurada apenas por nostálgicos ou colecionadores, tenho o orgulho de conhecer carrilhões, relógios de bolso e pequenas jóias de pulso para mulheres. Entre relógios e estrelas, a convivência com meu pai foi de puro encantamento.

Num tempo em que o vegetarianismo era coisa de excêntricos, ele optou por uma alimentação à base de cereais, frutas, verduras e legumes. Nunca acreditou que a carne fosse boa para consumo e também não gostava de bebidas geladas. Tomava litros de água natural e estimulava o cachorrinho a beber vários goles por dia. Ao se levantar do sofá chamava: "Dick, vamos beber água." E o Lulu branquinho, de olhos pretos, ia para a vasilha que ficava perto do filtro na cozinha. O cão imitava o dono.

Uma de minhas melhores lembranças é a de uma escada comprida de madeira, colocada para alcançar o alçapão da casa onde o pai entrava para fazer consertos, às vezes me convidando para conhecer aquele desenho complexo de ripas e caibros nos quais se assentavam a caixa d'água e todo o sistema de distribuição de energia da casa de madeira construída nos anos 1940, com saneamento básico e serpentina para levar água quente do fogão à lenha - da época em que foi construída - para o banheiro.

Seu Antônio não era só relojoeiro. Foi o arquiteto de nossa casa simples que fez questão de estar ligada ao saneamento básico, de água e esgoto, sendo esse um dos motivos que o fez se mudar de Londrina - onde chegou ao fim dos anos 1930 - para Cornélio Procópio, nos anos 1940, onde a infraestrutura era mais desenvolvida, motivo pelo qual a cidade tímida foi chamada de "capital do asfalto."

Seu olhar de astrônomo, sanitarista e engenheiro era admirável, o que o fez ser um pai único, capaz de construir coisas especiais como bebedouros para beija-flor, artifícios para que a porta não batesse com o vento e uma granja inteira, com gaiolas feitas por ele mesmo, com arame e alicate. Meu pai era sobretudo um inventor que me ensinou também a construir histórias.

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A opinião da colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.

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