Literatura como expressão e cura
PUBLICAÇÃO
sábado, 14 de novembro de 2020
Celia Musilli - Grupo Folha
Como a sociedade reage diante do comportamento de uma pessoa com problemas mentais? A primeira reação quase sempre será querer distância do sujeito que destoa do comportamento padrão. As doenças mentais - que se abrem num amplo espectro que inclui a esquizofrenia, a bipolaridade, a depressão e tantas outras condições perturbadoras da saúde e da convivência social - são mal vistas por aqueles que desconhecem não só o sofrimento dos seus portadores e suas famílias, como desconhecem as capacidades dessas pessoas quando têm tratamento e acolhimento adequados.
No último domingo (8), fui convidada a dar uma palestra na Academia de Letras de Londrina e escolhi como tema a vida e a obra de Maura Lopes Cançado, escritora e esquizofrênica que também foi tema da minha dissertação de mestrado, concluída em 2014, na Unicamp.
De lá para cá, foram muitas palestras, conversas e artigos enfocando a autora que durante décadas foi colocada no isolamento não só em vida, como depois da morte. Lançado em 1965, um de seus livros - Hospício é Deus - durante muito tempo ficou sem novas edições - quando teve uma terceira edição, em 1968, a autora já era considerada pela crítica uma "escritora revelação", mas a obra só voltou às livrarias em 2015 depois que a editora Autêntica lançou uma caixa com dois volumes : o diário Hospício é Deus e O Sofredor do Ver, que reúne doze contos que, para muitos, figuram entre os melhores da literatura brasileira contemporânea. Ao todo, foram quase 50 anos de ostracismo mesmo após a sua morte.
Diagnosticada como esquizofrênica na juventude e internando-se voluntariamente numa clínica de Belo Horizonte aos 15 anos, a escritora nascida em São Gonçalo do Abaeté (MG) em 1929 e falecida no Rio em 1993, passou a existência entre períodos de internamento e de vida fora do manicômio, em fases que logo demandavam novas internações.
Seu instrumento para aplacar a dor da vida em hospício foi a escrita, usada também como recurso de expressão e tratamento, tendo em vista que através da literatura organizou seus pensamentos num ambiente em que tudo tendia ao caos. Os anos 1940, a partir dos quais Maura passou por uma série de internações, foram terríveis para os doentes que dependiam de tratamentos psiquiátricos. Sem as drogas e as terapias que hoje podem dar uma condição de vida mais plena a essas pessoas - incluindo o estudo e o trabalho - os tratamentos de choque durante os surtos, que por grande parte da história humana foram vistos como condição praticamente intratável, marcaram profundamente pessoas comuns e também escritores e artistas, reconhecidos por seu talento apesar da sombra da doença.
A cada palestra sobre o assunto, quando recebo depois o depoimento aliviado de pais e amigos de pessoas com doenças mentais, percebo que, muito além de um campo de estudo, minha pesquisa serve de alento para estabelecer parâmetros de como a sociedade pode conviver e valorizar pessoas marcadas por doenças que , mesmo no século 21, são vistas com preconceito. Quando pais com filhos e filhas diagnosticadas com doenças mentais me enviam mensagens após as palestras, sinto que o peso do estigma também é aliviado sobre suas vidas dedicadas a tratamentos e recursos para as pessoas que amam. Aos poucos, a ciência vem desvendando o mistério que ainda cerca as mentes fragmentadas, há notícias de novos tratamentos e novas formas de diagnóstico em curso. Mas acima de tudo, a compreensão e o amor são a força para ajudar os doentes mentais a sentirem-se acolhidos. O afeto sempre será um tratamento insubstituível.