Arte de Marco Jacobsen sobre foto de Maura Lopes Cançado
Arte de Marco Jacobsen sobre foto de Maura Lopes Cançado | Foto: Marco Jacobsen

Como a sociedade reage diante do comportamento de uma pessoa com problemas mentais? A primeira reação quase sempre será querer distância do sujeito que destoa do comportamento padrão. As doenças mentais - que se abrem num amplo espectro que inclui a esquizofrenia, a bipolaridade, a depressão e tantas outras condições perturbadoras da saúde e da convivência social - são mal vistas por aqueles que desconhecem não só o sofrimento dos seus portadores e suas famílias, como desconhecem as capacidades dessas pessoas quando têm tratamento e acolhimento adequados.

No último domingo (8), fui convidada a dar uma palestra na Academia de Letras de Londrina e escolhi como tema a vida e a obra de Maura Lopes Cançado, escritora e esquizofrênica que também foi tema da minha dissertação de mestrado, concluída em 2014, na Unicamp.

Arte de Marco Jacobsen sobre foto de Maura Lopes Cançado
Arte de Marco Jacobsen sobre foto de Maura Lopes Cançado | Foto: Marco Jacobsen

De lá para cá, foram muitas palestras, conversas e artigos enfocando a autora que durante décadas foi colocada no isolamento não só em vida, como depois da morte. Lançado em 1965, um de seus livros - Hospício é Deus - durante muito tempo ficou sem novas edições - quando teve uma terceira edição, em 1968, a autora já era considerada pela crítica uma "escritora revelação", mas a obra só voltou às livrarias em 2015 depois que a editora Autêntica lançou uma caixa com dois volumes : o diário Hospício é Deus e O Sofredor do Ver, que reúne doze contos que, para muitos, figuram entre os melhores da literatura brasileira contemporânea. Ao todo, foram quase 50 anos de ostracismo mesmo após a sua morte.

Diagnosticada como esquizofrênica na juventude e internando-se voluntariamente numa clínica de Belo Horizonte aos 15 anos, a escritora nascida em São Gonçalo do Abaeté (MG) em 1929 e falecida no Rio em 1993, passou a existência entre períodos de internamento e de vida fora do manicômio, em fases que logo demandavam novas internações.

Seu instrumento para aplacar a dor da vida em hospício foi a escrita, usada também como recurso de expressão e tratamento, tendo em vista que através da literatura organizou seus pensamentos num ambiente em que tudo tendia ao caos. Os anos 1940, a partir dos quais Maura passou por uma série de internações, foram terríveis para os doentes que dependiam de tratamentos psiquiátricos. Sem as drogas e as terapias que hoje podem dar uma condição de vida mais plena a essas pessoas - incluindo o estudo e o trabalho - os tratamentos de choque durante os surtos, que por grande parte da história humana foram vistos como condição praticamente intratável, marcaram profundamente pessoas comuns e também escritores e artistas, reconhecidos por seu talento apesar da sombra da doença.

A cada palestra sobre o assunto, quando recebo depois o depoimento aliviado de pais e amigos de pessoas com doenças mentais, percebo que, muito além de um campo de estudo, minha pesquisa serve de alento para estabelecer parâmetros de como a sociedade pode conviver e valorizar pessoas marcadas por doenças que , mesmo no século 21, são vistas com preconceito. Quando pais com filhos e filhas diagnosticadas com doenças mentais me enviam mensagens após as palestras, sinto que o peso do estigma também é aliviado sobre suas vidas dedicadas a tratamentos e recursos para as pessoas que amam. Aos poucos, a ciência vem desvendando o mistério que ainda cerca as mentes fragmentadas, há notícias de novos tratamentos e novas formas de diagnóstico em curso. Mas acima de tudo, a compreensão e o amor são a força para ajudar os doentes mentais a sentirem-se acolhidos. O afeto sempre será um tratamento insubstituível.