Quando morre um criador, mais do que pensar no que sua obra representa coletivamente, penso no que ela significa individualmente em nossos momentos solitários ou em meio ao público. Esta semana, quando desapareceu o cineasta Jean Luc Godard (1930-2022) , num suicídio assistido, lembrei de momentos em que estive na presença do que ele queria e fez da arte.

É sempre difícil destacar as melhores obras de um autor que admiramos. Mas dentre os filmes de Godard, uma de minhas escolhas é seu filme de estreia "Acossado" (1960). Filmado em preto e branco, tem Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg no elenco numa história que envolve o roubo de um carro, o posterior assassinato de um policial e o refúgio do assassino no apartamento de uma mulher que nada tinha a ver com o caso. Filme de baixo orçamento, conquistou um grande público, inaugurando a obra de Godard como um manifesto estético do que seria a Nouvelle Vague.

Tenho com o filme uma história pessoal. Numa das vezes em que vi "Acossado", numa mostra do cinema de Godard numa cidade do interior de São Paulo, estava sozinha na sala escura. A mostra que durou alguns dias não conquistou um só espectador além de mim nas tardes em que estive no cinema sentindo o privilégio e a decepção de ser a única na plateia. Nos meados dos anos 2000, com o cinema contaminado pelos filmes de ação sofríveis, velozes e furiosos, uma obra como a de Godard não cativou o público. Por sair todas as tardes sozinha das sessões senti vergonha, não por mim, mas pelo plateia ausente.

Outro filme marcante é "Le Mépris" - O Desprezo (1963) - a história de um casamento em desconstrução que tem no elenco Michel Picolli, Brigitte Bardot - então ícone absoluto do cinema francês - e o lendário diretor Fritz Lang que faz também um diretor num filme metalinguístico. Por contrato, Brigitte Bardot teria que fazer cenas de nu, Godard filtrou seu corpo com luzes nas cores da bandeira francesa - vermelho, branco e azul - o resultado é o que considero um poema erótico escrito com a câmera.

Mas meu preferido, aquele que ocupa o primeiro lugar no meu Top 10 do cinema, é "Alphaville" (1965), com Eddie Constantine e Anna Karina - musa de Godard. Nunca uma ficção científica me tocou tanto quanto "Alphaville" que ao abordar um mundo futurista, controlado por um computador e no qual são proibidos os sentimentos, torna-se uma narrativa poética, uma espécie de antecipação dos "fragmentos de um discurso amoroso", para o qual Godard fez montagens dos poemas de um único autor: o poeta surrealista francês Paul Éluard, co-parceiro do diretor na criação do roteiro.

Trata-se de um filme sobre a linguagem amorosa, um poema cinematográfico que marca momentos de minha maior intimidade com um filme e um diretor nos cinemas, onde nunca me importei em estar entre muitos espectadores ou ser a única na plateia. O cinema, acima de tudo, é uma relação pessoal entre o espectador e as imagens que tocam nossas emoções, conflitos e desejos.

...

A opinião da colunista não reflete, necessariamente a da Folha de Londrina.

...

Receba nossas notícias direto no seu celular, envie, também, suas fotos para a seção 'A cidade fala'. Adicione o WhatsApp da FOLHA por meio do número (43) 99869-0068 ou pelo link