Quem se opõe a um sistema político pode fazê-lo de várias formas. Escrevendo textos inflamados, distribuindo panfletos, perdendo a autocrítica de um jeito que já não percebe que seu discurso cheira à naftalina. Pode ainda utilizar imagens e insígnias como se estivéssemos nos anos da ascensão nazista ou da revolução russa. Os atos e vocabulários desses sujeitos parecem tão obsoletos quanto usar rapé em festa, mas eles insistem.

Há pessoas que enfrentam regimes de outro modo. O escritor tcheco Josef Skvorecky (1924- 2012) era um aficionado do jazz e fez do gênero sua arma contra dois regimes autoritários: o nazismo e o socialismo, tocando numa banda na juventude. Skvorecky percebeu cedo que a energia criativa é uma forma de protesto, simplesmente porque evoca a liberdade.

Não é difícil compreender por que toda vez que um governo autoritário desponta a arte passa ser alvo num ataque geralmente ancorado em preceitos morais que incluem a caça à nudez, aos ritmos libertários, à dança dionisíaca e outras formas de expressão sujeitas à caça às bruxas que, de tempos em tempos, surge como estandarte dos anos de censura.

Skvorecky relata suas experiências num campo minado no livro "O Saxofone Baixo", homônimo de uma de suas novelas mais conhecidas. No prefácio, intitulado "Red Music" (paródia do blues que ele e seus amigos confundiam com a cor), ele reproduz um decálogo nazista que ameaçava músicos de jazz com um repertório de sandices que permeiam o que se maquia como "princípios" para impor a censura.

No decálogo fica decretado o banimento do jazz em regulamentos risíveis quando se percebe a que ponto pode chegar o fanatismo travestido de "bons costumes'"

O autor teve acesso ao decálogo em 1958, mas ele circulou bem antes. Seguem alguns tópicos:

- Peças em ritmo de foxtrote (chamado swing) não podem exceder 20 por cento dos repertórios de pequenas orquestras e bandas de dança;

-(...) dá-se preferência também a composições de ritmos vivos e não a ritmos lentos (os chamados blues); o andamento não deve ultrapassar um certo grau de "alegro", correspondendo ao senso ariano de disciplina e moderação. Em hipótese alguma os excessos negroides do ritmo (chamado jazz) ou das apresentações em solo (chamados breaks) são tolerados.

- É estritamente proibido o uso de instrumentos estranhos ao espírito germânico (como os chocalhos, flexatone, escovas, etc), assim como os silenciosos, que transformam o nobre som dos instrumentos de sopro e os metais em lamúrias do tipo judaico-maçom (chamados wa-wa, hat etc).

- Puxar as cordas com os dedos é proibido, pois pode estragar o instrumento e é prejudicial à musicalidade ariana;

- Os músicos são também proibidos de fazer improvisações vocais sem sentido (o chamado scat, ou bee-bop).

Para alegria da humanidade, apesar de Hitler e Goebells, o "doce veneno do jazz" não só resistiu como prevaleceu nos guetos.

Anos depois, os músicos de jazz sofreriam novo ataque sob o regime de Stalin e novos Goebells passaram a confrontar o gênero musical criando para isso suas próprias bíblias soviéticas.

O inimigo da vez era então o capitalismo americano e quem gostava de jazz foi novamente tachado de "decadente ou pervertido", numa repaginação à esquerda daquilo que no nazismo foi denominado "arte degenerada" e incluía uma gama enorme de linguagens que estão na origem da arte moderna.

"Bíblias" de sujeitos chamados V. Gorodinsky ou I. Nestyev - autores respectivamente de "Música da pobreza espiritual" e "Cacofonia do dólar" - valiam-se da mesma desqualificação da outra ditadura, tratando o jazz como "soluço de bêbado" ou "música de canibais" - sem contar os indefectíveis "pervertidos", "inferiores" e "degenerados".

O texto de Skvorecky, escrito em 1977, parece um trompete a iluminar consciências sobre o retorno da censura à arte para condenar performances, exposições e livros, sob o artifício moral que muitos engolem como o discurso dos ungidos dos novos tempos.

Considero muita sorte ter encontrado este livro num sebo, em edição da Record de 1999, ao preço modesto de R$ 5,00. Mais que uma trombeta dos apocalipses históricos, ele soa como um solo de sax para acordar ingênuos e incomodar mal-intencionados à direita e à esquerda dos simulacros do Pai.

Republicamos a crônica da colunista Célia Musilli, que está em férias

Receba nossas notícias direto no seu celular, envie, também, suas fotos para a seção 'A cidade fala'. Adicione o WhatsApp da FOLHA por meio do número (43) 99869-0068 ou pelo link wa.me/message/6WMTNSJARGMLL1