Imagem ilustrativa da imagem Inveja de quê, cara pálida?
| Foto: Marco Jacobsen

Dia desses encontrei um divã e não foi numa sessão de análise. Encontrei-o por acaso na sala de uma amiga, cujo pai foi psicanalista e deixou de herança um divã azul e estiloso. Freud o elegeu como "encosto" ideal para múltiplas viagens ao inconsciente. Era preciso deixar as pessoas à vontade em qualquer tentativa de descobrirem a si mesmas. O divã entrou no consultório e o de Freud era lindo, como se vê em fotos que mostram aquele móvel recoberto de mantas e almofadas, com aconchego de ninho.

No divã, com a mente voltada para o século 20, fui tomada de certezas e dúvidas sobre as teorias de Freud. Não, não conheço bem suas teorias, embora toda a cultura contemporânea tenha absorvido conceitos que pontuam conversas corriqueiras com expressões como histeria, complexo de castração ou comportamento edipiano. O velho Freud paira sobre nossas cabeças ainda que não sejamos versados em psicanálise e o divã me trouxe alguns insights como se vozes antigas voltassem aos meus ouvidos para identificar naquele móvel as pegadas de outros inconscientes, nas trilhas do desejo e da repressão.

Comecei a pensar de onde Freud teria tirado ideia de que as mulheres têm inveja do pênis, o que redundaria no complexo de castração. Ponderei que, na época de Freud, ser homem era muito melhor do que ser mulher. Porque ser mulher significava comportar-se como um ser reprimido, estressado, apartado de sua sexualidade, num período em que as mulheres mal abriam as pernas, a não ser na hora do parto. E o parto, embora cercado de idealização, era um momento traumático para mulheres que pouco conheciam seu corpo, dando à luz, muitas vezes, quando ainda eram quase meninas.

A partir dos anos 60 fala-se mais da "libertação da mulher". Mas o fato é que a " superioridade masculina", a despeito de todas as revoluções, foi consagrada a partir do atributo do pênis, acatado pelo próprio Freud, como uma ideia que atravessou gerações como uma sagração que confere força e competitividade aos homens.

O que me ocorre é que Freud também não se abriu para uma inversão de seu raciocínio, considerando que os homens também poderiam sentir inveja do misterioso aparelho sexual feminino, internalizado como uma rosa. O potencial feminino estava lá, em dobras e pétalas de fazer inveja, conduzindo a um labirinto que acaba no útero, uma das mais fantásticas criações da natureza onde o mistério do desejo, da cópula e da fecundação toma forma. E tudo isso seria muito mais prazeroso se as mulheres não tivessem atravessado séculos de castração não pela falta de um pênis, mas pela falta de conhecimento de seu próprio corpo.

Que bem nos teria feito Freud se em vez de nos acossar com a ideia de "invejar o pênis", tivesse nos compensado com a ideia de um botãozinho entre as nossas pernas que, uma vez acionado, pode nos levar ao verdadeiro paraíso sem padecimentos.

É inegável a contribuição de Freud para a valorização da sexualidade feminina, mas falar em inveja nos deixou ainda em situação de tal inferioridade que atrasou descobertas libertárias que nos encheriam de orgulho e autoestima.

Decerto o doutor levou em conta o tamanho do pênis, possivelmente ereto, em detrimento do nosso diminuto clitóris. Mas tamanho não é documento, Dr. Freud nem certifica a inveja.

O homem é ostensivo por natureza e, de minha parte, admiro aquele enfeite que eles têm entre as pernas, um penduricalho vistoso que fica ainda mais bonito quando ereto, a nos prestar reverências bem-vindas.

Por outro lado, é prazeroso demais sermos donas de uma joia tão internalizada, um broche em formato de pétalas, que ainda conta com um botãozinho, um chip oculto a detonar megabytes de prazer do qual ficamos apartadas durante séculos por desconhecimento ou vergonha da própria anatomia, num mundo tomado pelo conhecimento desenvolvido por homens que ainda nos tacharam de ...invejosas.

E antes que confundam minha fala, vou alertando: sinto um tal orgulho da feminilidade que não posso acatar o complexo de castração sem questionar firmemente depois de mais de um século: "Afinal, inveja de quê, cara pálida?"

Republicamos crônica da colunista Célia Musilli, que está em férias