No centenário de Clarice Lispector, completado este ano, será lançado o filme “A Paixão Segundo G.H.”, baseado num de seus romances mais importantes, com Maria Fernanda Cândido como protagonista. No romance, a autora escreve em primeira pessoa, mostrando uma busca alucinada da realidade, uma busca alucinada do eu.

A narrativa apresenta uma mulher abastada, que vive no Rio de Janeiro, face a face com sua condição alienada, seu vazio interior, até que numa manhã resolve fazer uma faxina no quarto da empregada, que havia sido demitida, e se depara com uma barata.

Quando se fala neste romance, um dos principais elementos lembrados é a barata. Com um misto de asco e deslumbramento, os leitores de Clarice acompanham a protagonista comendo a barata, devidamente macetada na porta de um armário. Eu, que me apavoro até com as baratinhas mortas pelos meus gatos, senti o mesmo que milhares de leitores diante da cena inusitada de uma personagem devorando um inseto.

Mas isso vai muito além da aflição ou do nojo. É preciso se aprofundar no romance assim como a protagonista penetra nas vísceras da barata, numa situação limite, para compreender a complexidade de um artifício narrativo que leva a personagem à descoberta do que é estar vivo e do que é ser humano.

Ao comer a barata, a personagem regressa a um estado primitivo, selvagem, através da “provação”, que “parecia um gosto quase adocicado de certas pétalas de flor (...) – eu cuspia a mim mesma, sem chegar jamais ao ponto de sentir que enfim tivesse cuspido minha alma toda."

.
. | Foto: Arte: Marco jacobsen sobre foto de Clarice Lispector

O que se observa é que a personagem está se despojando do que ela foi até aquele instante e, ao sentir uma náusea física e existencial, passa a ser outra coisa, além de outra pessoa, um ser real na compreensão exata do que é a vida, esse emaranhado de vísceras e gosmas que requer também consciência.

A literatura de Clarice Lispector frequentemente é analisada em comparação à corrente filosófica existencialista que teve Jean Paul-Sartre como um de seus maiores expoentes. Um ponto em comum em seus contos e romances são os acontecimentos cotidianos que deflagram uma revelação ou epifania. É no dia a dia, em situações banais, que seus personagens fazem grandes descobertas acerca de si mesmos e das coisas do mundo, num misto de realidade e divindade. Segundo o crítico Alfredo Bosi, em A Paixão Segundo G.H., a autora “despoja o eu das ilusões cotidianas e entrega novo sentido à realidade.”

O filme baseado no romance, com roteiro e direção de Luiz Fernando Carvalho, é uma das estreias nacionais aguardadas para 2020. O grande desafio será trazer às telas um romance introspectivo, em primeira pessoa, sem levar o espectador ao tédio. Mais que isso, fico pensando nas reações da plateia ao se deparar com a cena da barata sendo devorada. A cena terá que trazer a mesma atmosfera que deflagra situação tão inusitada no romance, dando o devido contraponto existencial para que não se transforme apenas numa imagem nauseante.

Mas vem muito mais de Clarice Lispector no seu centenário, mais cartas e textos inéditos, desenhos e pinturas que dão a dimensão da escritora que foi uma grande criadora. Com Clarice, nada é fácil, é tudo sempre inusitado, complexo e revelador do absurdo de ser humano, com seus assombros e fragilidades.